OS NATUREBAS DO CHILE: Devaneando no pós viagem.
Voltei do Chile. Tinha acabado de voltar do Sul do país, com uma passadinha pelos vinhedos de Sampa. Sempre na mesma labuta deliciosa de visitar produtores, experimentar vinhos, saber das novidades.
Muita gente se pergunta se eu vivo de férias. Não, eu não vivo de férias. Se não estou viajando, estou na Enoteca, não tem meio termo. E por mais que as viagens sejam regadas à vinho – e na Enoteca também – pouca gente se dá conta de que esse tipo de viagem é puramente trabalho. Minha sorte é que meu trabalho e meus prazeres andam lado a lado, então acabo tendo o melhor de dois mundos.
De qualquer maneira, sempre que volto de uma viagem assim, ficam muito claras para mim duas coisas: primeiro, as pessoas falam muito mais do que fazem. Segundo: o problema inteiro de tudo ainda é a falta de informação, a falta de recursos, a falta de integração, o problema do sistema agrícola e claro, os egos e as picuinhas.
Em qualquer lugar do mundo os problemas ligados ao vinho são os mesmos. Se pegarmos a galera do vinho natural, biodinâmico e orgânico, mais ainda. Obviamente que temos um maior ou menor desenvolvimento cultural, histórico e de apoio governamental em cada país, mas no fundo, o quadro é o mesmo.
Muita gente dizendo que é e não é. Muita gente fazendo algo pseudo natural para entrar na modinha. Grandes e pequenas vinícolas se aproveitando de rótulos e dizeres que enganem o público para “fingir” que é natural e é descoladinho. Muita gente abusando da boa vontade dos agricultores/viticultores pequenos. Muita gente que está cagando pra cultura e pra tradição do país. Muita gente que fala abobrinha. Muita gente que prefere postar fotinho à entender realmente a essência do vinho – e olha que eu posto muito mais fotinho do que eu realmente gostaria, pelo único motivo de ter a ilusão de que posso estar levando alguma informação útil pra alguém.
Sim, isso é mais um desabafo do que um texto. Se você quer os textos alegres e divertidos que costumo postar, voilá. Melhor pular esse. Eu sei, eu sei que a leveza acabou virando meu “estilo” de levar as informações pra frente. Mas a realidade é que estou cada vez mais chata.
Há uma enorme confusão no mundinho do vinho. Se repararem bem, sempre me refiro aos vinhos “naturebas”. Para bom entendedor, é uma brincadeira. Como eu sempre digo, é meu modo carinhoso de chamar o grande, confuso e nada homogêo grupo dos vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos. Dentro desse grupo existem os melhores e os piores, os maiores e os menores, os que eu mais gosto e os que eu menos gosto. Não considero vinho orgânico que só tem o selo mais é mais industrial do que molho de lata. Não considero gente que só porque não filtrou o vinho chama o vinho de natural. Não considero biodinâmicos que enterram quinhentos chifres com um trator, só porquê a biodinâmica é “legal”.
Quando você começa a entender que o vinho natural nada mais é do que o vinho que deveria ser nosso alimento, começa a perceber toda a grande classe dos vinhos comerciais como um… produto. Bom ou mal, vá você consumir ou não, mas um produto. Um produto comercial, sujeito à marketing, modas, egos, dinheiro, grandes mercados, industrialização, catzo a quatro.
Não sou contra a indústria. Apenas não me interessa mais. Não tenho tesão de tomar um vinho de 100 pontos qualquermané e ficar com o dente tingido de roxo. Não tenho mais tesão de tomar um vinho de alguém que se diz orgânico mas manipula o vinho na bodega no limite do aceitável, só pra ter um selo. Não tenho mais tesão de não tomar nada, em absoluta hipótese, que não me acrescente alguma coisa.
E da mesma maneira que eu sou louca o suficiente para plantar a alface que eu como e criar as cabras que me dão leite, sou louca o suficiente para não me relacionar com pessoas que não me dizem nada. E para não tomar vinhos que não me dizem nada.
O mundo dos naturebas, dentro do seu microcosmo, é grande. Mas tem muita gente também perdida, que nem palhaço de circo, tentando fazer alguma coisa que não é o espelho dele mesmo. Se você não é o seu vinho e seu vinho não é você, alguma coisa está errada. Virou um produto. Se o viticultor biodinâmico não é a própria natureza, alguma coisa está errada. Se o pequeno produtor não está arando sua terra ou indo ao campo todos os dias, alguma coisa está errada. Ou seja, no mundo dos naturebas, nem tudo que reluz é ouro. Tem gente muito mais séria e muito mais atrativa do que outras. O vinho é apenas um reflexo do homem em relação à si mesmo e à natureza ao seu redor.
Centenas de vinícolas artesanais no Brasil fecharam as portas nos últimos anos. O governo não só não ajuda como não atrapalha. Consumidores idem. As pessoas já não fazem mais seu vinho em casa, nem nas regiões tradicionais de vinho. Da mesma forma que não cultivam sua horta. Hectares e hectares de uva Pais foram arrancadas no Chile por conta da indústria madeireira, que é mais rentável. Me pergunto quantos degustadores, agora todos entusiasmados pelos vinhos “estranhos” chilenos ficariam realmente chateados com essa informação.
A maneira que comemos afeta a maneira que vivemos. E vice versa.
Se alguém nunca se deu conta de que vinho e comida é a base da cultura alimentar – salvo os povos que não bebem vinho, mas tem suas outras bebidas tradicionais – me pergunto por quê raios todo mundo acha o máximo comprar o pepino orgânico e acha estranho comprar vinho orgânico. Mais ainda, acham o máximo ir na feirinha de pequenos produtores todo sábado, mas acham mais divertido comprar um vinho a trocentos paus num restaurante que cobra uma margem de 300%.
O vinho é um produto agrícola como qualquer outro. E se formos a fundo, os grandes problemas do vinho são exatamente parelhos aos grandes problemas da produção agrícola. Pequenos produtores, produtores artesanais, conhecimento ancestral, tudo isso que foi esmagado pelo grande boom industrial alimentício e que virou até motivo de chacota para as gerações mais novas. Uvas autóctones, técnicas antigas, que foram esquecidas no campo e na bodega.
Há quem apense que eu, como todos que estão no movimento dos vinhos da alimentação saudável e sustentável, estão brincando de Maria Antonieta na sua vila camponesa. Ok, muitos estão. Mas que pensem. Não entenderam e não querem entender a profundidade da coisa. Há quem pense que tentar ir no cerne da questão e mostrar que tudo começa no solo – nossa cultura, nosso respeito pela terra, nossa saúde, a saúde da natureza, nossas tradições, nossa comida, nosso vinho – é coisa de neoarcadista com nostalgia do campo. Que pensem.
Só gostaria que antes de falarem besteira, ou não falarem nada, que talvez seja até pior – pegassem uma semana das suas vidas e, em vez de fazer qualquer outra coisa, visitassem os produtores de vinho do próprio país. Pegassem o lixo do seu restaurante dito “sustentável” e reciclassem. Fizessem qualquer coisa que não fosse a omissão total e completa do desinteresse pelo que colocam goela abaixo.
Cada vez que volto de uma viagem assim, volto metade sorrindo e metade chorando. Claro que é divertido. É muito divertido. Pisa a pé tomando gin tônica, almoços inesquecíveis com produtores que te ensinam mais do que você imaginaria, paisagens lindas, pessoas maravilhosas, embriagês a todo tempo. Mas não dá pra esquecer que vivemos um colapso total entre nós, a terra, os alimentos – vinho incluso. E no fundo, embora muita gente esteja fazendo coisas maravilhosas, é um mundo corrompido e mal compreendido como qualquer outro. Afinal, somos humanos.
Talvez o problema seja meu, e essa minha piração toda seja somente falta do que fazer da vida – sim, já me disseram isso. O problema é que ultimamente não estou conseguindo mais deixar essas coisas de lado. Não consigo ser falsa o suficiente para elogiar um vinho ou uma pessoa que não gostei, ou para achar normal as pessoas comendo lixo e esbanjando luxo por aí. Não é normal. Nosso mundo está doente, de cabeça e de corpo. Tem vezes que prefiro ficar com minhas cabras a ter que conviver com gente ou coisa que não me diga nada.
E o que tudo isso tem a ver com o vinho? Voilá. Vinho natural é muito mais do que sulfito ou não sulfito, biodinâmica é muito mais do que lua ou não lua, orgânico é muito mais do que selo ou não selo, agrotóxico ou cobre.
Vinho se trata de pessoas e de natureza. De entendimento, de respeito, de prazer, de beleza. Vinho é um produto agrícola e enquanto não cuidarmos da terra de onde ele vem e das pessoas que estão ali, a coisa continuará sem sentido. Enquanto não estabelecermos novamente nossa conexão com o que comemos ou com o que bebemos, assim como com quem falamos, moramos junto, encontramos na rua – a coisa continuará sem sentido. Como é a grande parte do tempo, pra grande maioria.