Comida, Sustentabilidade, Divagações

Tomates de xepa

Nos últimos dois dias respondi mais WhatsApp e direct do que se fosse meu aniversário duas vezes seguidas. Virei Lis Tomate em vez de Lis Cereja. O rolê do tomates teve uma repercussão tão grande que conseguimos dar vazão à quase uma tonelada de tomate. Vendendo pros nossos clientes, indicando pra restaurante, fazendo molho. Foi lindo ver a galera de restaurante orgânico interessada, se unindo, participando. As pessoas que me seguem aqui no insta e os clientes da Enoteca idem. Não faltou coração nem casa nova para os tomates, que viraram molhos, conservas, papinhas, saladas. O mérito não é nosso. Isso só aconteceu pois o Reinaldo, nosso amigo da “O verdureiro Orgânico”, faz esse trabalho lindo de procurar produtos orgânicos de xepa, de devolução, fora do padrão, excedentes de safra…. E tenta repassar isso de volta pro mercado, ganhando nada ou quase nada por isso. Quem quiser pode entrar em contato com ele direto, inclusive, pois além de fazer essa ponte com os produtores orgânicos de Sampa, ele sempre tem alguma coisa de hortifruti na casa dele, em Pinheiros.

Pra quem não acompanhou a história, nós “adotamos” duas toneladas de tomate orgânico que foram devolvidas por uma grande rede de supermercados. É, isso acontece. Mesmo com contrato, se os produtos estão “fora do padrão”, ou “fora do prazo”, ou se a demanda diminui, os supermercados simplesmente devolvem a carga e o produtor fica amargando o prejuízo. Essa leva foi colhida um pouco depois do “correto” e já chegaram vermelhos no destino. Pá. Voltaram. E ficaram lá no produtor, amadurecendo dia a dia, sem ter canal de escoamento suficiente, afinal, ele estava contando com a venda para o supermercado, e não tem vendas diretas, lojinha ou vender ambulante que vá dar conta de vender a produção. Muita coisa simplesmente vai pro lixo, e estraga. Pois os produtores também não tem condições de processar ( e legalmente a maioria nem poderia ) esses excedentes, transformando em molhos ou qualquer outro tipo de produto vendável e que consiga dar vazão e conservar a produção devolvida.

Pra quem ficou meio pasmo, isso é bem mais comum do que a gente pensa. Sempre falo que lugar de orgânico não é no supermercado. Essa é uma das razões. As grandes redes, mesmo as mais ditas boazinhas e verdes, acabam pagando preços irrisórios e ainda colocando contratos absurdos, que praticamente escravizam o produtor. Mas se o produtor não vender pra supermercado ou pra cooperativas ( que fazem a mesma coisa ), eles vão vender pra quem? Se hoje ninguém mais compra direto da fazenda, ninguém mais frequenta mercearia, ninguém mais compra localmente – e tudo se concentra nos mercados e supermercados, que quando não tem abastecimento próprio, são abastecidos por enormes distribuidoras? Pois é. Chegamos no “x” da questão. Um dos principais problemas no mundo não é a falta de produção de comida em si, mas a distribuição, o desperdício e o escoamento dos excedentes, além da migração de um sistema de produção e compra local para um sistema de produção industrial e compra em grandes redes. Sem ter pra quem vender, o pequeno produtor se rende à cadeira industrial, e vende seus produtos para distribuidoras, cooperativas, supermercados. Do outro lado, as pessoas mais interessadas perguntam: “mas onde eu acho esses produtos orgânicos?” “Orgânico é sempre caro”, “não existe orgânico suficiente pra alimentar o mundo”. Esse sistema industrial alimentar força os pequenos produtores a venderem para grandes redes, ou então, a venderem suas terras para as grandes empresas do agronegócio. E o que era uma paisagem com vários pequenos agricultores, se transforma em uma paisagem com poucos grandes agricultores. E aí é aquela coisa: monocultura, agrotóxico, fertilizante sintético. O que além de acabar com a biodiversidade, com o solo e poluir as águas, põe em esquecimento muitas espécies comestíveis e ainda força o trabalhador rural à migrar para a cidade. Éxodo rural, população sem emprego, mais gente na rua, etc, etc, etc. Pois é. O que você coloca pra dentro da sua boca tem relação direta com o cara que pede dinheiro no seu farol. Se você nunca tinha parado pra pensar isso, é hora de começar.

O problema a produção de alimentos é tão grande, que os dados são absurdos: se produz mais de 3 vezes o suficiente para alimentar o mundo. Ou seja, o mote de industrializar a agricultura e a alimentação em prol de acabar com a fome do mundo é falsa – mas ão falsa que além de não ter acabado com a fome do mundo até hoje, só contribuiu para o empobrecimento do solo, a poluição do meio ambiente e o aumento de populações cada vez mais doentes e mais obesas, migrando para as cidades e abandonando o campo e suas tradições. Por isso que eu repito: lugar de orgânico não é no supermercado. E isso eu falo literal e metaforicamente. Você não está proibido de comprar um orgânico de bandeirinha no mercado perto da sua casa. Mas essa comodidade diz muito de como o sistema alimentar embrutece a gente e faz com que a gente se pareça mais com ratinhos rodando numa rodinha, com a falsa impressão de que estamos indo pra frente, do que propriamente com seres humanos que pensam. Lugar de orgânico é na feira, é no produtor, é direto. Só tentando eliminar ao máximo os intermediários que lucram horrores e pagam apenas o mínimo para os produtores, é que a gente consegue incentivar a galera a ficar no campo produzindo. Senão o povo desiste, vende as terras pra um agronegócio, seja de soja seja de gado, ou vai fazer qualquer coisa que dê uma vida mais digna com um pouco mais de dinheiro. Quando a gente compra direto do produtor, a gente garante um preço justo por aquele alimento. O cara que produz ganha mais, você economiza, evitamos o desperdício de alimentos e o gasto de energias fósseis que acontece quando existem muitos intermediários entre um e outro ( entregas, devoluções, cargas que estragam, má armazenagem, etc, etc…), além de termos a possibilidade de comprar alimentos sempre frescos e com menos ou nada de veneno. Ou você acha que sua frutinha ou seu leguminho, que você compra na prateleira do supermercado, está fresco? A maioria tem meses de armazenagem, muitas vezes com altas doses de conservantes e substâncias anti-brotamento. É, galera. Nem tudo são flores.

Daí muita gente me pergunta: mas poxa, se eu ficar na mão só de vendinha, só de mercearia, só de produtor que me entrega em casa ou de feira orgânica, vai ter menos variedade. E o abacate que eu gosto de comer o ano inteiro? E meu tomate pra molho o ano inteiro? E as frutas vermelhas importadas que eu compro pra bater no meu Kefir de leite? Ah, gente, o assunto começa a se aprofundar. Não tem como deixar a cadeia de produção e alimentação mais saudável se a gente não se livrar desse hábito horrível de que podemos ter tudo o tempo inteiro. É exatamente isso que alimenta a cadeia industrial alimentar. A ilusão de que você pode ter tudo – só que isso muitas vezes à custo de agrotóxicos e aditivos alimentares. A única maneira de cortar o mal pela raíz é voltar a consumir local, direto e sazonal. A única. Então sim, você não vai ter abacate o ano inteiro, e vai ter que comer outras coisas que não tinha o costume de comer. Olha aí, sua nutrição já ganha pontos. Você vai ter que às vezes comprar produtos frescos e transformá-los para que eles durem mais, como leite, legumes. Olha aí, a gente começa a resgatar processos tradicionais de alimentação, conservação, receitas. Você começa a consumir o que está mais barato e o que está mais abundante na época…… hmmm, e por acaso os produtos autóctones não precisam de venenos para nascerem bonitos, e os produtos sazonais sempre estão em seu momento ótimo de nutrientes. Óbvio, né? A gente só ganha com isso. Mas tem que mudar a chavinha da cabeça e ser menos manipulado pelo sistema alimentar.

O cenário é que, orgânico ou não, muita comida vai pro lixo. O que a gente está tentando fazer não é nenhum mérito não, é só o mínimo do bom senso pra quem se diz trabalhar com sustentabilidade: é usar a estrutura da Enoteca pra ser um ponto onde as pessoas possam comprar esse tipo de produto, além de, obviamente, incentivar que se compre mais em feiras livres, em mercados orgânicos de rua ou diretamente dos produtores. Repito que todos os nossos fornecedores estão à disposição de quem quiser comprar direto. O que a gente está fazendo com esse idéia da mercearia na garagem é comprar esses produtos “sem destino”, de xepa, devolução, sem padrão, etc…. pagar o produtor assim que recebe, não fazer com que ele fique no prejuízo, evitar desperdício de alimento bom e limpo, tentando escoar o mais rápido possível diretamente para o público final. Assim a gente incentiva o produtor, leva produto orgânico com preço justo pra galera, e ainda economiza nas contas no restaurante, obviamente, pois também acabo com produto bom a preços ótimos. Mas claro que não é tão simples – tem todo o trampo do Reinaldo de ficar “caçando” esses produtos, tem a mão de obra insana de ficar processando os alimentos que podem estragar ( fazendo molho de tomate, conserva de pepino, purê de mandioquinha ), tem custo de produção, tem neurônio que queima, e tem o rolê hercúleo de intermediar o escoamento do produto in natura, seja na “mercearia” ou intermediando compras maiores para os restaurantes orgânicos.

É nessas horas que eu agradeço por ter um parafuso a menos e uma equipe que é mais doida do que eu, pois  não só compra a idéia como ajuda a colocar em prática com uma empolgação sem precedentes. Confesso que quando pedi os primeiros 100Kg de tomate para ver se eu conseguia vender aqui na garagem da Enoteca, não botava fé em como isso ia repercutir. Mas não só vendemos os 100Kg, como tivemos que pedir mais 200kg ontem, e hoje já pedi mais 200kg. O furor foi tanto que o pessoal que passava na rua começou a entrar pra comprar, como se em vez de restaurante fossemos uma mercearia mesmo. E além do tomate queria também levar molho, e levar pepino, e levar abacate…. Nossa, mas essas mexericas você pode vender?! Genial. No total, já escoamos mais de uma tonelada de tomate em dois dias. E muita gente ainda ficou sem tomate, o que mostra como somos carentes de produtos bons a bons preços e como temos uma força muito maior do que a gente imagina. É só matar no peito e não ter preguiça de fazer ou de levantar do sofá pra buscar. Agora, da mesma maneira que é gratificante ver as pessoas vindo de casa, saindo do conforto, trazendo suas sacolas e levando os tomates com um sorriso no rosto, é triste constatar essa falha gigantesca no nosso sistema de produção e distribuição alimentar. Só rolou esse surto de gente querendo tomate pois tem muita gente querendo comprar, tem muito produtor querendo vender…. mas o caminho entre um e outro acaba afastando e dispersando esse contato direto. Portanto, se ainda não ficou claro, lugar de orgânico é direto no produtor. A gente facilita o caminho apenas para abrir alas.

14/4/2018
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