Comida, Divagações

Fermentados láticos, conservas, fermentações.

Conservas

Conservar alimentos talvez seja uma das coisas mais antigas que fazemos – pelo menos desde que tivemos a brilhante idéia de plantar e cozinhar o que comemos. Vários métodos de estocagem e conservação foram sendo criados, afinal, haviam épocas de muita abundância e outras de escassez, o que nos forçou a usar nossa criatividade: conservas lácteas, conservas ácidas, conservas em sal, fermentados, curados, secos, compotas. As variantes são inúmeras.

Hoje em dia, em época de geladeiras e freezers, vivendo num país tropical onde tudo cresce e floresce, pode parecer meio forçado ficar fazendo conservas de alimentos. Mas a verdade é que não é não. Além de preservação de técnicas que são verdadeiras artes culinárias tradicionais, conservar e fermentar alimentos é uma maneira ótima de evitar o desperdício e adicionar sabor, texturas e muitos nutrientes ao prato. Algumas conservas, como por exemplo as lactofermentadas, acabam deixando os alimentos nutricionalmente mais disponíveis e digestos, além de dar uma ajudinha extra na flora intestinal, pois são probióticos – como o kefir de leite, de água, kombucha. E flora intestinal feliz é vida – literalmente. Ajuda a manter a cabeça e o corpinho no lugar.

Fermentação é o processo no qual um microorganismo converte açúcar em alguma outra substância, na ausência de oxigênio. Vem do latim “fervere”, que significa ferver. Esse processo foi descrito pelos romanos, ao observar o vinho borbulhando nos tanques, embora eles não tivessem a menor idéia do que fosse isso – foi só no século XIX que Louis Pasteur começou a estudar todo o lance dos microorganismos e saber o que acontecia de fato nesses processos.

Ah. Os carboidratos também são açúcares: e também servem de “alimento” para esses microorganismos. Mas podemos encontrar também a fermentação ocorrendo em proteínas, como carnes e peixes: e da mesma maneira alguns microorganismos fermentativos transformam e “quebram” as proteínas em outros componentes menores, como amino ácidos, transformando radicalmente sabor, textura e aroma.

Uma questão interessante é o porque dos alimentos fermentados geralmente serem mais atrativos ao nosso paladar: pois bem, nosso corpo é inteligente. E na maior parte das vezes, alimentos complexos e difíceis de digerir, como alguns carboidratos e proteínas, quando transformadas e quebradas em moléculas menores, mais simples e mais fáceis de serem metalizadas, automaticamente se fazem mais tentadoras ao nosso consumo. Pois o corpo sabe que ali os nutrientes estão mais disponíveis e com fácil assimilação.

Lactofermentados: 

As conservas lactofermentadas, além de darem um sabor super especial, são ótimas para conservar alimentos frescos que você vai poder comer o ano inteiro, e de quebra ainda ganham todo o “poder” probiótico da lactofermentação. E flora intestinal feliz é vida – literalmente. Ajuda a manter a cabeça e o corpinho no lugar.

Muita gente já sabe, mas sempre bom lembrar que muitos dos problemas de saúde começam por um desequilíbrio na flora intestinal – e que geralmente têm a ver com os maus hábitos alimentares que abusam dos aditivos, açúcar, derivados animais, carnes, refinados e industrializadas em geral. 

Bom, em tempo: embora muita gente, por conta do nome que confunde mesmo, pense que só exista lactofermentação em meios onde há derivados lácteos, não tem nada a ver uma coisa com a outra: esse nome é só por conta das bactérias lácteas, responsáveis pela fermentação láctea, e que nada tem a ver com a presença do leite em si. Ok, obviamente que leite tem bactérias lácteas também, mas é importante saber que nem só no leite existe essa turma. As bactérias lácteas estão por todo o canto, principalmente nas cascas dos legumes e verduras, e não tem esse nome “porque estão no leite”, mas sim, porque transformam transformam açúcar em “ácido lácteo”, que dá aquele azedinho característico aos alimentos. Sabe onde as bactérias lácteas também atuam? Nas fermentações dos vinhos, transformando ácido málico em ácido lácteo.

Para lactofermentar é simples: basta colocar os legumes em um pote fechado, com água e sal. O sal vai ajudar no sabor da conserva, mas principalmente na condução correta dessa fermentação nos estágios iniciais, impedindo a proliferação de microorganismos indesejáveis. A proporção ideal é de 2% a 5% ( 20g a 50g de sal para 1L de água ), dependendo do vegetal. Na dúvida, vai no “uma pitada”, que geralmente dá certo. 

Bactérias Lácteas:

Embora muita gente ache que só exista lactofermentação em derivados do leite, as responsáveis por esse processo são as bactérias lácteas, que nada tem a ver com leite em si. Essas bactérias transformam açúcar em ácido lácteo. São bactérias que estão presentes por todo o canto, nas frutas, nas cascas dos legumes e na nossa pele. São bactérias que vivem em meio ácido, PH baixo, e são anaeróbias, ou seja, não precisam de oxigênio como a gente. Por isso as fermentações lácteas são feitas em potes herméticos.

Acetobacter:

Também tem um monte por aí, nas cascas da maior parte dos alimentos. Mas essa bactéria converte outras coisas: álcool em ácido acético, e é responsável pelo “avinagrado” de certas fermentações, inclusive, a do

próprio vinagre. Nesse caso, as leveduras convertem primeiro o açúcar em álcool – e depois esse álcool é convertido em ácido acético pelas acetobatérias.

Qual a razão de fermentar?

Olha. Digo uma coisa: fermentar é bom, todo mundo gosta, mas convenhamos, temos que ter um certo bom senso. Antes de sairmos importando tendências gastronomia à torto e à direito, é sempre bom lembrar que estamos num país tropical, como já dizia Pelo Vaz, onde tudo cresce e floresce. ⠀Num país onde temos as estações do ano todas em um dia só, uma infinidade de produtos frescos das mais diversas regiões e frutas que caem na nossa cabeça, dado à abundância de fertilidade e biodiversidade ( boa parte dela que a gente até desconhece ) … será que faz tanto sentido assim ficar pirando em fermentar e conservar as coisas? ⠀

Olha lá quem está dizendo isso, eu que fermento até o meu próprio dedo do pé, se deixar. A questão é que, não importa se você vai conservar, fazer molho, picles, compota doce ….. tem que rolar um mínimo de pensamento em cima do assunto. Não adianta saber fazer chucrute se você não liga a mínima para mandioca pubada, ou pro o polvilho azedo, pro aluá, ou pras nossas tradições de salga e cura – pelo menos ao meu ver. ⠀

Importar conceitos é muito fácil. Complicado é ver o que deles a gente consegue aproveitar, digerir e tirar lá do fundo do poço nossas próprias tradições alimentares e culturais. ⠀Tendências deveriam ser isso: um anzol de idéias, não um copia e cola. Docinhos saudáveis de castanhas, cacau, tâmaras, frutas secas, óleo de coco. Todo mundo gosta. Mas será mesmo que se entupir de gordura e energia num calor de 40 graus faz esse sentido todo? Ou mais uma vez a gente está trazendo um conceito de alimentação saudável sem refletir sobre o assunto?⠀

Eu vou continuar fermentando meus quiabos, meus repolhos, minhas pimentas. Até porque hoje em dia as fermentações e conservas não servem apenas para sobrevivência em lugares onde se vive 6 meses debaixo do gelo, e a única maneira de comer é se alimentando do que se conservou. Ou então, em lugares sem resfriamento onde precisamos conservar os produtos para eles se manterem frescos. Ou em situações de excesso de safras. ⠀

As fermentações e conservas hoje em dia tem um valor muito mais curativo e educacional: curativo no sentido de inserir probióticos numa dieta ocidental pra lá de errada, pois conseguimos destruir nossa flora intestinal em menos de um século, e educativa no sentido de lembrar às pessoas que não devemos desperdiçar os alimentos e devemos preservar nossos saberes alimentares. ⠀

Eu mesma tenho uma bisavó que veio lá do Leste Europeu, judia, e provavelmente comia um monte de fermentados na dieta. Brasil não é o estereótipo de cozinha brasileira que a gente mesmo vende. Não preciso comer peixe amazônico pra dizer que eu sou brasileira. Temos a corte de ser um poço de mesclas infindáveis. Vivemos em um país que não exclui antepassados de nenhuma cultura, o que nos dá uma liberdade de ação na cozinha muito grande, quando começamos a ir mais a fundo no caso. ⠀

Só que raramente vejo alguém interessado em pesquisar nossos próprios processos ancestrais de alimentação, ou refletir aquilo que, dentro das tendências mundiais, nos faz pensar e olhar para o próprio umbigo.⠀Comer uma trufa de castanhas e frutas secas é gostoso sim. Comer um picles bem feito é gostoso sim. Mas vale a pena a reflexão do que faz sentido pra gente, no lugar onde estamos, com nossas próprias demandas corporais e culturais. ⠀

Livros para ler:

The Noma Guide to Fermentation, David Zilber and René Redzepi

The Art of Fermentation: An In-Depth Exploration of Essential Concepts and Processes from Around the World, Sandor Katz

28/12/2019
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