Tomates de xepa & deperdício de alimentos.
Essa semana tem chutney de tomatinho tigre na cesta orgânica da Enoteca. Fizemos aqui em casa com tomatinhos que vieram de resgate de xepas orgânicas. Xepas? Xepas de feira? Sim, xepas de feira. Ughhhn. Ficou com nojinho? Ótimo, era essa a intenção mesmo. Continue lendo. Você vai ficar com mais nojinho ainda quando entender o que acontece com boa parte dos alimentos cultivados no planeta.
Essa semana usamos apenas umas dezenas de quilos de tomate de xepa. Mas provavelmente todos se lembram do episódio do resgate dos tomates na Enoteca. Foram 4 toneladas de tomates orgânicos resgatados e revendidos à preço de custo que, se não fosse por essa ação, iriam para o lixo. Vendemos diretamente ao mesmo preço do produtor, e parte compramos nós mesmos, para fazer molho de tomate, que ficou estocado durante anos na Enoteca. Sim, molho de tomate é uma maneira de conserva, um jeito de conservar o tomate fresco da safra durante o resto do ano, quando não é mais época de tomate. Um amigo nosso faz esse ‘resgate’ de ingredientes pelas feiras e produtores orgânicos de Sampa, comprando tudo aquilo que não tem vazão, que é fora do padrão, que as grandes redes devolvem, e que acabaria sendo jogado fora ou então vendido à preço de banana, prejudicando em muito os produtores que tiveram um trabalhão para cultivar aquilo.
Na ocasião, já faz uns 3 anos, nós “adotamos” quatro toneladas de tomate orgânico que foram devolvidas por uma grande rede de supermercados. É, isso acontece. Mesmo com contrato, se os produtos estão “fora do padrão”, ou “fora do prazo”, ou se a demanda diminui, os supermercados simplesmente devolvem a carga e o produtor fica amargando o prejuízo. Aquela leva que adotamos foi colhida um pouco depois do “ponto de cor correto” e já chegaram ‘vermelhos demais’ no destino. Voltaram. E ficaram lá parados no produtor, amadurecendo dia a dia, sem canal de escoamento suficiente – afinal, o produtor já estava contando com a venda certa e integral para aquele o supermercado, e como a maior parte dos produtores agrícolas no país, em especial os pequenos, familiares e orgênciso, não faz vendas diretas ao consumidor, não tem lojinha no Instagram ou departamento de marketing para fazer qualquer tipo de divulgação. Resultado? Muita coisa simplesmente vai pro lixo, e estraga. Pois além de não terem canais de vendas diretas ao consumidor, do comércio local e das feiras regionais terem sidos substituídos pela cadeia de distribuição, esses produtores também não tem condições de ‘processar ‘ esses excedentes, ou seja, transformá-los em outros produtos, como molhos ou qualquer outra coisa vendável e que seja capaz de dar vazão e conservar essa produção que iria pro lixo. Pior ainda, mesmo que conseguissem administrar a mão de obra para esse processamento, legalmente a maioria nem poderia fazer isso, por termos uma legislação bastante falha nesse sentido, que não enxerga a propriedade agrícola como um organismo integrado – então a maior parte dos produtores agrícolas não pode, no mesmo ambiente, processar o seu produto.
Pra quem ficou meio pasmo, acredite, isso é bem mais comum do que a gente pensa. Sempre falo que lugar de orgânico não é no supermercado, e essa é uma das razões. As grandes redes, mesmo as mais ditas boazinhas e verdes, acabam pagando preços irrisórios e ainda colocando contratos absurdos, que praticamente escravizam o produtor. Mas se o produtor não vender pra supermercado ou pra cooperativas ( que fazem a mesma coisa ), eles vão vender pra quem? Se hoje ninguém mais compra direto da fazenda, ninguém mais frequenta mercearia, ninguém mais compra localmente – e tudo se concentra nos mercados e supermercados, que quando não tem abastecimento próprio, são abastecidos por enormes distribuidoras? Pois é. Chegamos no “x” da questão.
Um dos principais problemas no mundo não é a falta de produção de comida em si, todos sabemos. Essa história de que precisamos da agricultura industrial para alimentar o mundo é uma mentira, embora ainda tenha gente que caia nela.
Com o que se produz e o que se desperdiça, conseguiríamos alimentar 10 planetas: são aproximadamente 1.6 bilhões de toneladas de alimentos desperdiçadas no mundo, por ano; mas a distribuição falha, o desperdício e o não escoamento dos excedentes, provenientes da migração de um sistema de produção|compra local para um sistema de produção industrial e compra por intermediários, distribuidores e grandes redes, faz com que a produção agrícola seja muito maior do que o necessário, e mesmo assim, a comida não chega em quem tem que chegar. Cerca de 30% da produção agrícola nunca chega na mesa de ninguém, sem falar da questão de distribuição de terras para grandes e pequenos agricultores, ou do cultivo em massa de variedades para alimentar outras indústrias, e não seres humanos.
Apenas 30% dos alimentos consumidos no planeta vem de fazendas industriais que cultivam em larga escala. Cerca de 70% de todos os alimentos consumidos pela humanidade vem de pequenos produtores, que possuem menos de um quarto de toda a área cultivável do planeta. Mais de três quartos de cultivo são destinadas às fazendas industriais. ( Hungry for land: small farmers feeds the words with less than a quarter of all farmland” ; Grain, 28 de Maio de 2014 ). Mas então pequenos produtores conseguem com 1/4 do total de terras cultiváveis alimentar 70% do planeta? Pois é. Pequenas propriedades agrícolas, em especial as de manejo ecológico, são muito mais férteis e mais produtivas. Se pequenos produtores tivessem metade das terras cultiváveis do mundo, teríamos comida de sobra sem precisar recorrer à agricultura industrial. Uma das maiores mentiras que giram por aí é que a industrialização da agricultura iria alimentar o mundo. Grandes fazendas industriais baseadas em monoculturas, fertilizantes sintéticos e agroquímicos detém 3/4 de todas as terras cultiváveis, e representam apenas 30% da alimentação humana. Motivo? Além delas serem menos produtivas e por isso precisarem de mais terras ( pois comprometem a fertilidade e a saúde dos solos e das plantas, que ficam dependentes de insumos agrícolas e de fertilizantes artificiais ), a maior parte do que é produzido não vai para alimentação humana. Vai para alimentação de animais ( gado, galinhas, etc… ) da indústria de carne, ovos, leite. Ou seja, a indústria alimenta outra indústria, que degrada ainda mais o ambiente.
Os pequenos agricultores – que muitas vezes são pessoas até mesmo não letradas, que dependem da terra e do que cultivam para sobrevivência da família – acabam, com a dissolução desse modo de consumo local e mais direto e sem ter pra quem vender, rendendo-se à cadeia industrial, e passa a vender seus produtos não mais em feiras, em mercearias, ou direto para os consumidores, mas sim, para intermediátios, para as distribuidoras, cooperativas, supermercados, que pagam valores baixos e muitas vezes com contratos bastante cruéis de prazos, quantidades, e padrões.
Sujeitos a produzirem em um padrão específico, em grandes quantidades, mais rapidamente e com preços menores, esses mesmos agricultores são seduzidos pela agricultura industrial, que promete, com seus fertilizantes sintéticos e venenos, uma produção maior, mais segura e mais rentável. Infelizmente, sabemos hoje que isso só gera dívidas para esses produtores agrícolas, que vão para o banco fazer empréstimos para comprar sementes híbridas, transgênicas, fertilizantes sintéticos e venenos – e que no fim das contas, não garante maior ou melhor produção. Pelo contrário, as pragas só ficam mais resistentes, o solo cada vez mais pobre, as plantas cada vez mais fracas, e um ciclo vicioso se instala na propriedade, que se torna dependente cada vez mais de mais sementes compradas, de mais adubo químico e de mais venenos na produção.
Paulatinamente, o que era antes uma paisagem com muitos pequenos agricultores produzindo muitas variedades de alimentos, se transformou em uma paisagem de grandes propriedades que produzindo poucas variedades de alimentos.
Hoje em dia nós consumimos apenas 2% de todas as espécies vegetais comestíveis no planeta, sendo que a maioria das pessoas se restringe a cerca de uma dúzia de variedades, quando muito.
Monoculturas, agrotóxicos, fertilizante sintéticos – isso é o que conhecemos como agricultura hoje em dia. Esse trio, além de acabar com a biodiversidade, empobrecer o solo e poluir as águas, põe em esquecimento muitas espécies comestíveis, e força, pouco a pouco, o trabalhador rural à migrar para a cidade, pois a agricultura industrial precisa de menos gente e de mais veneno, de menos indivíduos e de mais máquinas. O conhecimento tradicional agrícola das populações do campo, forjado durante séculos de conhecimento não tem utilidade no mundo do agronegócio, e esse homem do campo é impelido para o centro urbano. Êxodo rural, desemprego, e muitos acabam nas ruas.
Pois é. O que você coloca pra dentro da sua boca tem relação direta com aquele homem que pede dinheiro no seu farol, e você finge que não o vê. De qualquer maneira, se você nunca tinha parado pra pensar isso, é hora de começar. As suas escolhas alimentares não dizem respeito somente à você ou sua saúde. Suas escolhas alimentares modificam e moldam o mundo.