FreeRange doc.: O homem | Fermentações.
( esse é um trecho do nosso documentário #freerangedoc , que estreou agora em Novembro. Para assistir na íntegra é só acessar AQUI. FreeRange doc. é um filme de @liscereja e @fabioknoll tradução e narrações @gchastang )
Fermentação. Processo no qual um microorganismo converte açúcares em outras substâncias, geralmente expelindo energia e gás carbônico. Vem do latim “fervere”, que significa ferver. Os romanos cunharam essa palavra ao observar os vinhos que borbulhavam nos tanques, embora tenha sido apenas no século XIX que Louis Pasteur começou a estudar e descrever o que hoje sabemos ser “microorganismos”, bem como os processos de fermentação feitos por eles. Até o século XIX nós fermentávamos sem saber o que era a fermentação.
O mundo invisível dos micro-organismos sempre foi um mistério para o ser humano. Seres “invisíveis” que detonam processos vivos e silenciosos dentro e fora de nosso corpo.
Fermentações são processos essencialmente livres, anárquicos. Não seguem as regras criadas pelos seres humanos. Mesmo os mais habilidosos, que conseguem conduzir as fermentações espontâneas sem alterar o seu percurso natural, sabem que sempre há o fator do imprevisível envolvido: afinal, microorganismos são seres vivos.
As leveduras e bactérias estão em toda parte: no solo, nas folhas das plantas, nas cascas dos legumes, nas mãos, nos tanques, nas barricas. A essas nômades anárquicas damos o nome de selvagens. Às fermentações feitas por elas, damos o nome de naturais, espontâneas, selvagens, caipiras, criadas soltas.
Ao longo da história o homem domesticou parte das plantas, dos animais e dos microorganismos. A indústria nos deu ferramentas para aprisionar, padronizar e replicar em larga escala esses seres do mundo invisível, e com isso torná-los mais “úteis” e mais adaptados ao nosso modo de vida moderno, que não admite a espontaneidade e o imprevisível da vida.
É disso que se tratam todos os processos industriais, racionais, que tentam artificialmente replicar os processos da natureza de maneira ordenada e “segura”: do triunfo do controle, mesmo que ilusório, sobre o delicado e confuso mundo da espontaneidade e da imprevisibilidade da vida. E essa negação constante de que na realidade não temos controle sobre nada, nos faz pouco a pouco, também menos humanos.
Ao pisarem na areia, os europeus se tornaram mais nativos, e os nativos se tornaram mais europeus. No final, é exatamente disso que o Brasil de trata. De assimilação. Digestão e assimilação de povos, de culturas, de feitios. Nosso país-continente é um organismo vivo que respira e se alimenta de tudo e de todos, digerindo e adquirindo novas formas e novos modos de seguir adiante.
Nós, brasileiros, somos resultado de todos os que aqui vieram ou estiveram, antes e depois dos europeus. Somos barro moldado à caium e à vinho, e o que vemos hoje emergir desse caldeirão caótico de influências e vinificações, mais imperfeito e menos expressivo do que gostaríamos, se configura como um novo movimento agrícola e vitivinícola no país.
Movimentos não nascem isolados. Assim como em muitas partes do mundo, o Brasil da década de noventa viu surgir, muito timidamente, o embrião do que seria hoje o movimento de vinificação natural no país. Depois de 2010, também como na maior parte do mundo, vimos o grande ‘boom’ natural e uma miríade de vinhateiros veio à tona. Boa parte deles não se deu conta, no início, que faziam vinhos naturais ou de que participavam de um movimento maior que já se desenhava mundialmente desde a década de oitenta.
Hoje, cerca de dez anos depois, existem mais de 30 projetos de vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais, artesanais e familiares, além de uns tantos que fazem vinificação natural com uvas em conversão ou convencionais de agricultura familiar, distribuídos principalmente no Rio Grande do Sul.
Infelizmente, existe uma lacuna conceitual importante no movimento brasileiro: a maior parte dos vinhos vinificados de maneira natural no país não provém de agricultura própria ou de uvas orgânicas, e boa parte de quem faz vinho hoje em dia não é agricultor. Soma-se a isso o fato de que, os poucos que o são, ainda em menor parte investem em um cultivo realmente orgânico ou biodinâmico.
Esse é um fenômeno que não se restringe ao Brasil e parece ter origem em uma certa falta de aprofundamento nos princípios reais do que ‘é vinho natural’, na essência do movimento: afinal, não se trata de um estilo de vinho, mas de um movimento agrícola, social e cultural, de um estilo de ver e de viver a vida. A moda, a tendência e a dispersão de convicções mais consistentes faz com que exista cada vez mais uma profusão de ‘vinhateiros não agricultores’ ou de agricultores não orgânicos vinificando seus vinhos sem aditivos. Apenas 1/6 dos produtores de vinho que se consideram sustentáveis e vinificam naturalmente no Brasil produzem suas próprias uvas.
Assim como os movimentos não existem sozinhos, movimentos estão sempre à frente da lei. Um dos principais problemas do vinho natural e artesanal no Brasil é legislativo. As leis são mal elaboradas e não beneficiam o pequeno agricultor. A agricultura orgânica e biodinâmica não recebe absolutamente nenhum incentivo, nem a vinificação natural – enquanto as empresas de aditivos agroquímicos e enológicos dominam o mercado.
Mais de 80% dos produtores de vinho artesanais e naturais do Brasil ainda estão em situação ilegal – o que dificulta a venda, exportação e manutenção dos meios de subsistência desses produtores. Esses produtores de vinho não são ilegais por escolha, mas por necessidade: nossa legislação ainda não abre espaço para eles.
Embora não seja impossível, é difícil e extremamente caro montar uma estrutura que atenda aos requisitos sanitários e legislativos atuais. Inconsistências nas leis aplicadas ao vinho artesanal, como a restrição de vendas fora do estado do produtor ou o limite de vendas para estabelecimentos comerciais, juntamente com uma alta taxa de impostos, complica ainda mais a vida do pequeno produtor de vinho | agricultor.