Divagações, Vinhos

O movimento do vinho natural no Brasil ( artigo para The Preserve )

Vinho no Brasil: O movimento do vinho natural no Brasil.

 

“Pode-se notar que os conhecimentos, tal como água represada, porém vivente, paulatinamente se elevam até um certo nível em que as mais belas descobertas são feitas não tanto pelos indivíduos, mas pelo próprio tempo, tal como coisas muito importantes foram feitas ao mesmo tempo por dois ou mais pensadores instruídos” Johann Wolfganf Von Goethe, O experimento como mediador entre objeto e sujeito, 1792.

Somos, na visão Européia, o Novo Mundo. E pelo prisma do vinho, realmente  o somos, pois as videiras não possuem raízes tão antigas em nosso solo como possuem no velho continente. E assim como as dimensões continentais e a biodiversidade dessa terra “onde se plantando tudo dá”, nossa capacidade de assimilação e digestão do que vem de fora também é infinita. Ao pisarem na areia, os europeus se tornaram mais nativos, e os nativos se tornaram mais europeus. No final, é exatamente disso que o Brasil de trata. De assimilação. Digestão e assimilação de povos, de culturas, de feitios. 

Na concepção dos povos nativos brasileiros, tudo nesta terra tem um espírito – e quando comemos uma planta ou um animal, também adquirimos esse espírito. Por isso a suma importância do que se ingeria nessas culturas, social ou ritualisticamente. Nós nos tornamos, ao ingerir, o próprio alimento; e esse alimento já não é mais ele, é parte de nós mesmos. As barreiras entre alimento e alimentado se fundem.

O Brasil antes e depois de se tornar Brasil, antes e depois da invasão européia ou das imigrações de tantos povos que vieram em busca de “fazer a américa”, nunca deixou de ser o mítico canibal descrito por Hans Staden; nunca deixou de ser a planta carnívora que encantava e assustava os botânicos franceses. 

Nosso país-continente é um organismo vivo que respira e se alimenta de tudo e de todos, digerindo e adquirindo novas formas e novos modos de seguir adiante. Os decendentes dos italianos que fazem vinho no Rio Grande do Sul são tão brasileiros quando os decendentes dos índios que ainda fermentam mandioca nas margens dos rios, no Norte do país, embora uma visão ingênua sobre o tema possa enxergar o contrário. 

Nós, brasileiros, somos resultado de todos os que aqui vieram ou estiveram, antes e depois dos europeus. Nós somos barro moldado à caium e à vinho, e o que vemos hoje emergir desse caldeirão caótico de influências e vinificações, mais imperfeito e menos expressivo do que gostaríamos, se configura como um novo movimento agrícola e vitivinícola no país.

Movimentos não nascem sozinhos. Assim como em muitas partes do mundo, o  Brasil da década de noventa viu surgir, muito timidamente, o embrião do que seria hoje o movimento de vinificação natural no país.

Luiz Henrique Zanini e Álvaro Escher, com o que seria a Era dos Ventos. Marco Danielle, com o Atelier Tormentas. Acir Boroto e Zulmir DeLucca, na produção de uvas orgânicas, Juan Carrau, da vinícola Velho do Museu, produzindo uvas, vinhos orgânicos e biodinâmicos. Estes e muitos outros  pioneiros começaram a plantar de maneira mais limpa ou vinificar sem insumos enológicos entre as décadas de 1980|1990. 

Depois de 2010, também como na maior parte do mundo, vivemos o grande ‘boom’ natural e uma miríade de vinhateiros vir à tona: era a primeira geração de vinificação natural no país que se desenhava. Lizete Vicari, Eduardo Zenker, Marina Santos e tantos outros. Boa parte deles não se deu conta, no início, que faziam vinhos naturais ou de que participavam de um movimento maior que já se desenhava mundialmente desde a década de oitenta. 

Hoje, cerca de dez anos depois, existem mais de 30 projetos de vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais, artesanais e familiares, além de uns tantos que fazem vinificação natural com uvas em conversão ou convencionais de agricultura familiar, distribuídos principalmente no Rio Grande do Sul. O sul do país ainda é a região com a maior concentração de vinhateiros, – principalmente pelo fator histórico e cultural, pois foi ali que os primeiros imigrantes iniciaram a cultura do vinho. Iniciativas em Minas Gerais, São Paulo e nordeste do país são atualmente cada vez mais corriqueiras, expandindo as fronteiras da produção de vinho no país. 

Infelizmente, existe uma lacuna conceitual importante no movimento brasileiro: a maior parte dos vinhos vinificados de maneira natural no país não provém de agricultura própria ou de uvas orgânicas, e boa parte de quem faz vinho hoje em dia não é agricultor. Soma-se a isso o fato de que, os poucos que o são, ainda em menor parte investem em um cultivo realmente orgânico ou biodinâmico. 

Se entendermos que, embora não haja regulamente específico, um vinho ‘natural’ deva ser um vinho de uvas minimamente orgânicas ou biodinâmicas e vinificado sem aditivos, a maior parte do que sem considera ‘vinho natural’ no Brasil não poderia ser chamada assim. Se formos levar em consideração que uma das bases do vinho natural é a agricultura, e muitas pessoas defendem que o trabalho de campo não pode estar separado do trabalho de adega, isso se torna ainda mais relevante, e os vinhateiros que possuem os próprios vinhedos, cuidam de maneira orgânica e depois vinificam naturalmente são a minoria. Esse é um fenômeno que não se restringe ao Brasil e parece ter origem em uma certa falta de aprofundamento nos princípios reais do que ‘é vinho natural’, na essência do movimento: afinal, não se trata de um estilo de vinho, mas de um movimento agrícola, social e cultural, de um estilo de ver e de viver a vida. A moda, a tendência e a dispersão de convicções mais consistentes faz com que exista  cada vez mais uma profusão de ‘vinhateiros não agricultores’ ou de agricultores não orgânicos vinificando seus vinhos sem aditivos. Hoje apenas 1/6 dos produtores de vinho que se auto entitulam sustentáveis e de vinificação natural no Brasil produzem a própria uva. 

De qualquer maneira, no nosso caso, vemos uma modulação interessante: somente agora com esses vinhateiros mais desapegados dos paradigmas industriais, livres dos duros e inadequados padrões mercadológicos, é que começamos a traçar uma real identidade para o vinho brasileiro, seja no paladar, na escolha das uvas ou no manejo agrícola. Por mais que muito ainda deva ser feito no sentido de aprofundar conhecimento e ajustar a agricultura, esse movimento já desenha caminhos próprios que levam o vinho brasileiro para um rumo completamente distinto do traçado até então. 

Como no resto do mundo, os personagens do vinho natural no Brasil são dos mais diversos, embora sigam um padrão próprio do movimento mundial: agricultores tradicionais, familiares, que sempre mantiveram um cultivo limpo e saudável,  privilegiando as policulturas e os saberes tradicionais, hoje reconhecidos por isso; agricultores que partem para a conversão orgânica ou biodinâmica de seus vinhedos por estarem convencidos de que essa é a melhor e única opção para a saúde do planeta e da sociedade; jovens urbanos que voltam para as áreas rurais, para a terra, implementando novas percepções de produção e de consumo no trabalho do campo, frutos de uma nova geração de pensamento agrícola. Os que iniciam um cultivo orgânico ou uma vinificação natural simplesmente porque é ‘a nova tendência do mercado’ também figuram nesse cenário, obviamente, e não são minoria. 

Por convicção ou tendência, fato é que os vinhos brasileiros mais reconhecidos internacionalmente são, nos dias de hoje, provenientes desse movimento e desses pequenos viticultores que optaram por sair da curva. Até mesmo bebedores que torciam os narizes para o vinho nacional encontraram nesses vinhateiros desgarrados dos velhos estigmas uma fonte de novas experiências. 

Uvas trazidas pelos imigrantes do século XIX estão sendo redescobertas e resgatadas – como a branca Peverella, e variedades americanas antes menosprezadas como a Isabel, naturalmente resistente e sem necessidade de muitos tratamentos para o cultivo,  voltam para as adegas. Vinhos leves e frescos substituem os tintos amadeirados e gordos, borbulhas surgem a todo momento e madeiras brasileiras são testadas no amadurecimento dos vinhos. O estilo de vinhos que dominou o paradigma sensorial do brasileiro entre a década de 1970/2000 já não encontra lugar entre os bebedores modernos, cansados da mesmice e da falta de identidade desses rótulos. 

Mas da mesma forma que movimentos  não existem sozinhos, movimentos estão sempre à frente das leis. Hoje em dia um dos principais problemas do vinho natural e artesanal no Brasil é legislativo. As leis são mal feitas e não beneficiam o pequeno agricultor. A agricultura orgânica e biodinâmica não tem incentivos, assim como a vinificação natural  também não – enquanto empresas de agroquímicos e de aditivos ecológicos dominam o mercado. 

Hoje mais de 80% dos vinhateiros artesanais e naturais no Brasil ainda são ilegais – o que dificulta a comercialização, exportação e manutenção desse produtores no campo. Importante frisar que esses vinhateiros não são ilegais por opção, mas por condição: nossa legislação ainda não tem espaço para eles. 

Embora não seja impossível, é difícil e extremamente caro montar uma estrutura que atenda às exigências sanitárias e legislativas vigentes. Incoerências nas leis aplicadas ao vinho artesanal, como a restrição de venda para fora dos estados ou a limitação de venda para estabelecimentos comerciais, aliadas à uma alta taxas de impostos, dificulta ainda mais a vida do pequeno vinhateiro|agricultor.  

Além dos entraves burocráticos, outro tema atual nas rodas de discussão sobre vinhos no Brasil é a adequação do cultivo. Especificamente no que se diz respeito ao vinho, copiamos cultivos para climas temperados, de maneira muitas vezes míope, durante muito tempo. Desde a enxertia à altura das espaldeiras, várias falhas são cometidas na tentativa de um cultivo vitivinícola “tropical”, e como em outros tipos de culturas, falhas de adequação ou de conhecimento são preenchidas por milagrosos produtos agroquímicos fazem décadas. O Brasil é um dos líderes de consumo de agrotóxico no mundo, e além de nos faltarem opções mais sustentáveis e adaptadas à nossa realidade, somos um país de pensamento agrícola moldado pelos padrões da indústria. Umidade e fungos, por exemplo, são um dos principais problemas dos vinhateiros do sul do país, e essa característica regional faz com que muitas empresas de agroquímicos invistam pesado na lavagem cerebral dos produtores, usando a “impossibilidade de um cultivo sem venenos” como desculpa para inundar os campos com seus produtos. São centenas os produtos permitidos no cultivo de videiras no país, e a maior parte dos agricultores continua com o pensamento de que sem venenos, não é possível cultivar na região. 

A influência das empresas de agroquímicos no pensamento agrícola é um tema complexo e profundo, e muito presente no brasil rural. Somos um país voltado para o agronegócio, e não para a agricultura. Boa parte dos pequenos agricultores se vê refém de informações e treinamentos dados pelas empresas de veneno, e são impelidos, por falta de conhecimento, assistência e recursos, à cultivar da maneira  que ‘é ensinado’ por essas empresas. 

A equação da escravidão do fertilizante sintético, agrotóxicos e bancos é conhecida mundialmente, e aqui não escapamos à regra. Algumas regiões como Monte Belo do Sul, no Rio Grande do Sul, com grande concentração de vinhateiros artesanais e de vinificação natural, se encontra entre as de maior incidência de utilização de agrotóxicos do estado. As consequências disso ainda são desconhecidas, por ‘falta’ de estudos que mapeiem com exatidão os danos ao meio ambiente e à vida humana. Doenças degenerativas, infertilidade, quebras de safras e desenvolvimento de super pragas estão entre alguns dos problemas corriqueiros dessas regiões, embora muitas vezes abafados. 

Com todos os entraves fiscais, culturais,  territoriais, conceituais, sociais e legislativos, ironicamente o Brasil tem hoje a maior feira de vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos da América do Sul, em atividade desde 2013, mobilizando mais de 2000 pessoas a cada edição e mais de uma centena de produtores do mundo inteiro, em especial de países latino americanos, alguns deles muito mais avançados no movimento do vinho natural como por exemplo, o Chile. Os vinhos naturais brasileiros propriamente ditos, provenientes de uvas cultivadas pelos próprios vinhateiros, de maneira orgânica ou biodinâmica e vinificação natural ainda não a minoria no cenário do país – embora cada ano surjam novos projetos ligados à plantios sustentáveis, orgânicos, biodinâmicos, e dezenas de vinhateiros urbanos ou ‘rurais não agricultores’ que iniciam uma vida nova de vinificações limpas. Vinho natural  um tema complexo em qualquer país, e se torna ainda mais delicado em um país com história tão recente e ímpar de produção de uvas e elaboração de vinho, e é necessária muita sinceridade e abertura por parte do mercado e dos consumidores para não cair em mal entendidos ou má fé. Pois da mesma forma que existem vinhateiros que fazem vinhos de vinificação natural com uvas convencionais, muitos vinhos de selo orgânico se valem de praticamente tantos aditivos enológicos quanto os vinhos convencionais, e muitos vinhos ‘artesanais’ estampam o título no rótulo mas usam dos mesmos artifícios e aditivos da indústria, somente em menor escala. 

Não podemos generalizar ou categorizar em preto e branco o que é um movimento feito de convicções, história, paixão, tradições e seres humanos. A história de quem fez seu vinho, a maneira e os porquês, conhecer pessoalmente o vinhateiro e seus métodos é que vai fazer com que tenhamos mais proximidade e confiança no trabalho e no produto final, tenha selo ou não, diga ele que faz agricultura sustentável ou vinho natural. 

Afinal vinho natural é cultivo limpo, é vinificação pura, mas é também humanidade e respeito – pela terra e por quem a cultiva e  a habita. Mais que julgar ou recriminar o que vemos como lacunas ou como falhas, devemos nos ajudar para que haja um aprofundamento do movimento nele mesmo – e que os produtores tenham mais engajamento intelectual e técnico para que possam, pouco a pouco, criar raízes mais substanciosas na construção de uma agricultura verdadeiramente sustentável e de um movimento de vinhos naturais verdadeiramente coerente. Vinho natural, no fim das contas, se trata de relações humanas e de relações mais humanizadas.

O Brasil é um país que, por ter uma história muito recente no plantio e no consumo de vinhos, é por essa razão também livre. E estamos hoje em pleno usufruto dessa nossa liberdade, para o bom e para o mal sentido.

7/12/2020
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