Vinhos

O movimento de vinho natural está relacionado à uva? ( artigo para Sowing Seeds ) 

( artigo escrito para a Sowing Seeds Magazine ) 

Espumantes de mel, butiá, cereja do mato, uvaia: bebidas alcoólicas que nascem de fermentações espontâneas de meles de abelhas nativas como jataí, uruçu, mandaçaia, mirim-guaçu, tubuna, e de frutas autóctones da mata Atlântica brasileira, como araçá, guabiroba, pitanga, guabiju, cereja do mato, feijoa, uvaia, butiá, erva mate, guabiju. 

No Sul do país, a cerca de 4 anos, Marina Santos e Israel Dedea, figuras já importantes do movimento de vinho natural e da agricultura limpa no Brasil, pesquisam folhas e frutos nativos para a elaboração de bebidas alcoólicas e blends para infusões para o Projeto Seiva. O plantio agroflorestal, consorciado de especies nativas, árvores e ervas medicinais e aromáticas – que hoje já somam, em espécies, mais de 50 – é fruto de um trabalho de mais de 10 anos em sua propriedade em Pinto Bandeira.

A maioria desses meles e dessas frutas nativas são desconhecidas até mesmo pelo próprios brasileiros, embora nossas tradições de bebidas alcoólicas fermentadas sejam muito antigas e a biodiversidade da flora brasileira, globalmente conhecida. Isso é facilmente explicável se lembrarmos que hoje em dia não consumimos nem 2% de todas as espécies alimentícias do mundo, restringindo nossa variedade alimentar à monotonia das espécies comercialmente viáveis que prega o sistema vigente. Nos acostumamos a um modo de produzir, consumir, comer, beber, amar, viver, interagir e pensar muito pouco biodiverso. A agricultura industrial com suas monoculturas, fertilizantes sintéticos e agrotóxicos não contribuiu em nada para isso: temos de um lado meles de abelhas nativas e frutas da mata atlantica, biodiversidade de flora, fauna e cultura… e do outro lado – infelizmente e indiscutivelmente mais forte – a área de cultivo de soja, por exemplo, que somente no Brasil equivale à onze Bélgicas, num total de 33.245.190 ha. É dessa perda de biodiversidade real e metafórica, vegetal e cultural que Vandana Shiva nos alerta em suas teorias sobre as monoculturas do pensamento. 

Não precisamos ir muito longe na história para descobrir que, embora o Brasil seja conhecido pela cachaça – destilado de cana – nossos indígenas conheciam técnicas das mais diversas na elaboração de fermentados alcoolicos, e pasmem, já faziam até mesmo hidromel antes dos portugueses chegarem. Muitos dos nossos índios até hoje preservam essa cultura, em especial os tupi guaranis e os caiganques, do tronco linguístico Jê, distribuídos principalmente no Sul do Brasil. Também no Sul do Brasil está a maior concentração de vinhateiros e videiras do país, por conta de tradição migratória italiana e alemã, que trouxeram consigo as vinhas e a cultura do vinho no século 19.

Mais recentemente, já no século XX e em como muitos outros lugares do mundo, vimos o surgimento do movimento de vinhos naturais no país Muitos vinhateiros começaram a vinificar naturalmente desde a década de 80, mas o grande impacto no mercado veio depois de 2010: embora não sejamos considerados um país produtor de vinhos, a indústria do vinho no Sul do país é forte, e atualmente temos algumas dezenas de vinhateiros que se auto denominam “naturais”. 

Se entendermos que, embora não haja regulamento específico, um vinho ‘natural’ deva ser um vinho de uvas minimamente orgânicas ou biodinâmicas e vinificado sem aditivos, a maior parte do que sem considera ‘vinho natural’ no Brasil não poderia ser chamada assim. Embora seja uma grande contradição, muitos vinhateiros vinificam naturalmente uvas que não foram cultivadas de maneira organica, biodinâmica ou sustentavel. Se formos levar em consideração que uma das bases do vinho natural é a agricultura, e muitas pessoas defendem que o trabalho de campo não pode estar separado do trabalho de adega, isso se torna ainda mais relevante, embora por aqui os vinhateiros que possuem os próprios vinhedos, cuidam de maneira orgânica e depois vinificam naturalmente são a minoria – parte disso, obviamente, está relacionado à falta de incentivo governamental para plantio organico e leis falhas para pequenos agricultores e produções familiares. 

Infelizmente esse é um fenômeno que não se restringe ao Brasil: vinhos “naturais” que de uma maneira ou outra acabam fugindo do conceito original do movimento, e parece ter origem em uma certa falta de aprofundamento nos princípios reais do que ‘é vinho natural’, e na essência do movimento que surgiu na década de 80. Afinal, não se trata de um estilo de vinho, mas de um movimento agrícola, social e cultural, de um estilo de ver e de viver a vida. A moda, a tendência e a dispersão de convicções mais consistentes faz com que exista  cada vez mais uma profusão de ‘vinhateiros não agricultores’ ou de agricultores não orgânicos vinificando seus vinhos sem aditivos no país. Hoje apenas 1/6 dos produtores de vinho que se auto entitulam sustentáveis e de vinificação natural no Brasil produzem a própria uva. 

A variedade de espécies nativas brasileiras é imensurável. Nosso potencial para elaboração de alimentos é infinita – e qualquer um que pare pra pensar nisso, vê que acabamos reproduzindo fórmulas ( até mesmo dentro do próprio microcosmo do movimento vinho natural ) que não ultrapassam, ainda, sequer a camada superficial do que é o movimento em si. Vinho natural não é apenas um rótulo hipster ou um gosto funky. Vinho natural é preservação cultural e ambiental – assuntos que não são exatamente muito digestos em nenhum bar de vinhos por aí – em especial em um país como o Brasil, dominado pelo agronegócio e pela manipulação da mídia.  

Para citar somente um aspecto do quadro inteiro: o Glifosato é o agrotóxico mais vendido no Brasil, seguido pelo 2,4 -D, ambos herbicidas sistêmicos. O Rio Grande do Sul, sim, o principal produtor de vinhos – sejam eles convencionais ou naturais no Brasil – está entre os estados brasileiros de maior consumo desses herbicidas. No Brasil, o limite máximo de resíduos para o herbicida 2,4 – D, na água potável, é 300 vezes maior do que o permitido na União Européia. Para o herbicida glifosato, esse número é 5000 maior, e nas últimas três décadas, 75% das abelhas em certas regiões do mundo desapareceram por conta da utilização intensiva de agrotóxicos. Cerca de 500 milhões de abelhas morreram no Rio Grande do Sul apenas entre 2018 e 2019, colocando a região entre as de maior moralidade de abelhas no mundo – sendo que esses números contabilizam apenas as colmeias oficiais, e não as nativas, responsáveis pela maior parte da polinização do mundo. Muitas espécies nativas silvestres desaparecem sem deixar rastros nem números na imprensa, e sequer vamos colocar aqui o desflorestamento, o abandono das etnias indígenas, o domínio da agricultura industrial sobre a agricultura familiar ou o crescente êxodo rural, falta de emprego no caso, intoxicações por agrotóxico, contaminação das águas e do solo ou então o massacre cultural que é tão grande quanto as queimas da nossa Amazonia. 

Trabalhar com a terra, seja fermentando bebidas alcoólicas ou não, nunca é um ato imune – todas as nossas escolhas, sejam elas mais engajadas ou mais alienadas, geram uma resposta em algum momento para o planeta. Nossas escolhas alimentares, incluindo os vinhos que bebemos, tem muito mais relação com desigualdade social e com o surgimento de pandemias – como a que ainda estamos vivendo – do que muita gente prefere acreditar. 

Portanto, de uma certa maneira, Marina e Israel fermentando meles de abelhas nativas como mirim-guaçu, tubuna e jataí , além de frutas nativas da mata Atlântica como araçá, guabiroba, pitanga, guabiju, cereja do mato, feijoa, uvaia, butim, erva mate – cultivando a terra de maneira orgânica e biodinâmica, preservando a propriedade com manejos e extrema preocupação com a biodiversidade…. faz com que esses “vinhos” estejam muito mais alinhados ao que é o verdadeiro movimento do vinho natural do que muitos dos vinhateiros que surgiram nos últimos tempos, filhotes de uma onda que já se esqueceu que o vinho natural é sobretudo, um movimento agrícola e de resistência ao sistema industrial de pensamento.

Pela nossa legislação vinho é fermentado de uvas, e hidromel, fermentado de mel e água. Não existem legislações para a maior parte de “outros” vinhos de frutas nativas, misturas de frutas, folhas e meles, tampouco para a maioria dos fermentados ancestrais que fazem parte de nosso repertório cultural etílico. 

Assim como o Projeto Seiva, muitos “outros vinhos” surgem pelos meandros do Brasil . Vinhos de jabuticaba, de manga, espumantes de caju. E talvez esses vinhos que não são propriamente vinhos, no fim das contas, sejam o que de mais interessante, engajado e coerente esteja surgindo no nosso movimento  tupiniquins “de vinhos naturais “. Contradição? Não. Apenas idéias fermentando em um mundo que pode ser, prática e filosoficamente , mais biodiverso. 

 

20/7/2021
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