O outro vinho ( artigo para The Preserve )
( artigo escrito para a The Preserve Magazine )
O outro vinho.
O mel é uma das primeiras fontes de açúcar da humanidade e o hidromel, provavelmente, a bebida alcoólica mais antiga do mundo. Capaz de aproximar o homem dos próprios deuses, é indiscutivelmente associado, no mundo inteiro, à mitologia e aos povos Nórdicos.
Deve ter sido em um dia de maré mansa, em uma época muito anterior à nossa, que alguns vikings – ou até mesmo os próprios deuses nórdicos “em pessoa” – chegaram na costa brasileira para trocar receitas com os povos daqui. Sim. Pois até hoje, começando pela cabeceira meridional do rio Amazonas até o Sul do Brasil, encontramos diversas etnias indígenas que tem tradicionalmente o hidromel como bebida alcoólica.
Os índios da etnia Tupi-guarani e Gê são ávidos fermentadores de mel. Os índios Xucuru, por sua vez, fermentam o mel coletado de abelhas nativas das espécies mandaçaia e a uruçu com um macerado das cascas de uma árvore chamada “Cabraíba”, dando origem a um hidromel “fortificante da alma e do organismo”. Diversas tribos distribuídas por toda América Latina maceravam – e ainda maceram – folhas de tabaco & mel para o preparo de uma bebida alcoólica utilizada em rituais sagrados.
Hidromel abaixo da linha do equador? Isso mesmo. Onde há mel, fermenta-se mel – uma máxima lógica e simples que pode ser aplicada a qualquer ingrediente local e abundante. Onde havia abundância de uvas, fermentava-se uvas. Onde havia abundância de grãos, fermentava-se grãos. Essa lógica nos dá, de maneira bastante clara, uma boa noção de como surgiram as bebidas alcoólicas fermentadas no início dos tempos, e que deram origem, mais tarde, às bebidas alcoólicas modernas como as conhecemos hoje: as cervejas, os vinhos, os hidroméis, as cidras, entre muitos outros.
É justamente dessa obviedade na utilização dos recursos naturais disponíveis e abundantes que se fundamentou o nascimento de praticamente todas as bebidas alcoólicas primitivas. Não é por acaso que o vinho de uva nasceu na região da Geórgia : por ali a fruta é abundante, autóctone, vigorosa, adaptada, além de naturalmente repleta de açúcar e leveduras – duas características essenciais para o sucesso de uma boa bebida fermentada.
No anos de 1900, no Ceará, Nordeste brasileiro, a Fábrica de Vinhos de Caju Tito Silva exportava centenas de garrafas de “vinhos” de cajú para a Alemanha e Estados Unidos. Outro grande sucesso era o vinho de jabuticaba, tradição brasileira indígena pré-colonial e que esteve presente em muitas mesas jesuíticas nas primeiras missões pelos trópicos. Vinhos de cajus também eram frequentes em Moçambique, durante a época colonial, e em Burundi até hoje bananas são utilizadas para a fabricação de um fermentado alcoólico.
Na mesma época um festival agrícola de primavera na Alemanha recebia mais de 50 mil visitantes a procura de vinhos de cereja, ruibarbo, pêssego, e claro, maçãs. O Baumblütenfest é o segundo maior festival de bebidas na Alemanha depois da Oktoberfest, e surgiu para celebrar a estação e dar vazão à abundância das safras – afinal fermentar é uma das mais antigas e eficazes técnicas de conservação de alimentos frescos.
Embora a legislação de muitos países hoje se refira a “vinho” apenas como o “fermentado de uvas frescas”, existem pelo mundo muitos outros “vinhos”, boa parte com origem em uma antiga, longa e complexa tradição de bebidas alcoólicas ancestrais fermentadas.
Alguns autores não conseguem sequer escolher entre os termos “cerveja” ou “vinho” para definir as bebidas fermentadas ancestrais, embora muitos escolham fazer referência à “vinhos” para fermentados ancestrais de frutas ( frutose ), “cervejas” para fermentados ancestrais de grãos, tubérculos, raízes ( amido ), e hidromel quando a base é o mel. Claro que essas classificações ainda restringem bastante o mundo e variações infinitas das bebidas fermentadas ancestrais, mas uma “aproximação” linguistica e de conceitos com a nossa realidade pode nos ajudar a ter uma idéia mais clara dos processos envolvidos.
Antes da humanidade classificar, normatizar e padronizar as bebidas alcoólicas segundo regras de mercado, denominações de origem, características e até mesmo “normas de pureza”, o mundo dos fermentados alcoólicos era muito menos burocrático, e arrisco dizer, muito mais autêntico e divertido. As bebidas elaboradas e consumidas por nós tinham não só funções inebriantes, mas nutritivas, medicinais e sagradas.
Foi só na Idade Média que boa parte das bebidas alcoólicas conhecidas até então começou a ser classificada – se tornando assim também passíveis de fiscalização, controle e taxação. O atual mundo das bebidas alcoólicas fermentadas é o resultado de séculos de “engavetamento”, padronização, globalização de técnicas e ingredientes, industrialização e massificação, tornando-as cada vez mais distantes de sua origem, utilização tradicional e ou mesmo “razão de ser”.
Nós fizemos regras para elaboração e tornamos boa parte das bebidas alcoólicas replicáveis mundo afora. E embora muitas delas tenham se beneficiado com refinamento das técnicas e regras rígidas ao longo dos tempos, dando origem à verdadeiras jóias de tradição cultural e alimentar, por outro lado esse caminho – que muitas vezes esbarra mais na necessidade de controle e de taxação do que propriamente na valorização ou manutenção das tradições locais – acabou por estreitar as possibilidades fermentativas, relegando a um segundo plano todas as bebidas alcoólicas colocadas fora desse “gaveteiro” normativo e comercial do nosso mundo contemporâneo.