Vinhos

Vinho é só de uva? 

Uma coisa que ouço sempre: que vinho de outras frutas não é “vinho”. Bom, vamos lá. Quem defende que vinho é só de uva, fala o seguinte:

A legislação brasileira define vinho como “a bebida obtida pela fermentação alcoólica de mosto de uva sã, fresca e madura”. Na União Europeia, o vinho é legalmente definido como o produto obtido exclusivamente por fermentação parcial ou total de uvas frescas, inteiras ou esmagadas ou de mostos. No dicionário, logo no primeiro verbete, está lá: bebida alcoólica produzida por fermentação do sumo de uva. E se pegar a origem a palavra, então, temos “oinos”, em grego; “vinum”, em latim: “wein” e “wine” nas línguas germânicas e anglo-saxônicas, que tanto podem significar “vinho” como “videira”. Ou seja, vinho É DE UVA. 

Mãssssss…….

Se você bebe leite de coco, usa manteiga de cacau ou já foi em restaurante pra comer um cevichezinho de cajú, é melhor mudar o discurso. Afinal, leite, pela definição do dicionário, é um “líquido fisiológico branco, opaco, secretado pelas glândulas mamárias das fêmeas dos mamíferos.”, e manteiga, “produto alimentar, gorduroso, que se obtém batendo a nata do leite.” 

Onde ficam então o nosso leite de coco e a manteiga de cacau numa dessa? Bom, eles ficam no grande éden do campo semântico da nossa língua portuguesa, que é viva e não só permite, como até incentiva por sua complexidade, a metaforização de palavras que são “emprestadas” para designar coisas que ainda não tem nome. Então ao invés de falar “líquido viscoso branco oriundo da prensa da polpa fresca do fruto do coqueiro”, a gente fala leite de coco e pronto. O negócio parece leite, não tem palavra que explique melhor, então vira leite. Pela similaridade a gente vai fazendo essas quase metonímias e nomeando coisas novas com nomes do nosso mundo já conhecido, dando à luz à leites de coco, manteigas de cacau e a tantas outras coisas. A linguagem figurada, as metáforas e o emprestar e o dar novos sentidos  à palavras já conhecidas é um fenômeno comum, e não só aceito na nossa língua, como amplamente utilizado até como recurso estilístico na literatura.

Fenômeno comum também é a resistência às novas significações das coisas e das palavras – e esse apego à uma forma, a um sentido, a um modelo ou a um significado pode gerar… um certo preconceito contra os novos modelos, formas e  significados criados. Isso talvez explique porque tanta gente bate o pé dizendo que vinho de jaboticaba não é vinho, vinho de cajú não é vinho, e por aí vai. 

Mas. Já seria muito legal a gente combater o preconceito da expressão “vinho de fruta” só com essa coisa da conotação, denotação, metáfora e empréstimo de palavras, mas o buraco é muito mais fundo. 

Vamos do começo: quem disse que a origem etimológica da palavra vinho é só uma? E porque em uma língua X a palavra quer dizer vinho ou videira, e blá, isso justifica parar por aí? 

Bom, na verdade, na verdade, sinto informar, mas ao que tudo indica… o nome do VINHO veio antes da cultura da VIDEIRA. Mais exatamente milênios antes da era cristã, na Índia védica.

Em sânscrito, existe a palavra “vena”. VENA, essa palavra que aparentemente deu origem a toda a árvore das palavras relacionadas ao vinho, era o nome dado ao licor da planta que, fermentada, era o Soma, um fermentado considerado como mágico e poção da imortalidade, um deus poderoso em forma de bebida mesmo. O Livro dos Hinos, talvez o documento mais antigo da literatura hindu, composto por volta de 5.000 anos atrás, já dizia, sobre essa bebida : “Nós bebemos, nos tornamos imortais, chegamos à luz, e encontramos deuses”. 

É. Pra quem está já desconfiado, claro que não, essa bebida fermentada consumida em antigos rituais indus não era feita de uva, mas sim de plantas com efeitos psicotrópicos ou psicodélicos, como por exemplo… as já conhecidas Ayauasca ou a brasileiríssima Jurema. Aliás, vejam só, a gente fala “vinho de jurema”, pra se referir também à bebida feita com a Jurema e que tem efeitos bastante parecidos nessa aproximação toda com os deuses. 

Só sei que da palavra VENA se originaram os nomes correspondentes a palavra VINHO em quase todas as línguas da Europa: no russo (vino), no grego ( oinos), no latim (vinum), no italiano e do espanhol (vino), no português (vinho), no alemão (wein), no inglês (wine) e no francês (vin). Ah, e além do vinho, provavelmente também VENA deu origem à palavra Venus, pois vena também significa “amado”, e a raiz da palavra, ven, “amar”. 

Na Espagiria alquimica, se chama vinho o fermentado das plantas antes da destilação, é o vinho vegetal. E na própria linguagem química, muitas vezes se faz referência à “vinho” a qualquer mosto em estágio de fermentação.

É. Pois é. Mas muito além das metáforas da língua portuguesa, dos alquimistas e dos rituais indus psicodélicos, a gente também não pode esquecer a boa e velha questão da legislação, das regulamentações, e de como a gente foi colocando as bebidas alcoólicas fermentadas em caixinhas dentro de prateleiras ao longo dos séculos, por necessidades de padronização, replicação, e claro… taxação de impostos. 

Aí entra a coisa toda da nossa legislação e da legislação de muitos países dizerem que vinho é feito do mosto de uva, e pronto. 

O pessoal que se apega a isso esquece que as bebidas alcoólicas como a gente conhece hoje, como a cerveja, o vinho, a sidra e por aí vai, foram regulamentadas na sua maior parte, só na idade média. E a idade média, na grande linha do tempo do mundo, tá logo aí, foi meio que ontem. 

Embora a legislação de muitos países hoje se refira a “vinho” apenas como o “fermentado de uvas frescas”, existem pelo mundo muitos outros “vinhos”, boa parte com origem em uma antiga, longa e complexa tradição de bebidas alcoólicas ancestrais fermentadas, anteriores a todas as classificações e regulamentações. 

Alguns autores não conseguem nem sequer escolher entre os termos “cerveja” ou “vinho” para definir as bebidas fermentadas ancestrais, embora muitos escolham fazer referência à “vinhos” para fermentados ancestrais de frutas ( com base na utilização de frutose pra fermentar ), “cervejas” para fermentados ancestrais de grãos, tubérculos, raízes ( com base de amido ), e hidromel quando a base é … o mel. 

E muitos outros autores que escrevem sobre bebidas alcoólicas definem vinho como … tudo o que não é cerveja,  ou seja, todo fermentado que não é de raízes ou grãos, ou então, a toda bebida fermentada com origem em alguma planta que pode ser fermentada. 

De qq maneira, como eu disse antes, foi só na Idade Média que boa parte das bebidas alcoólicas conhecidas até então começou a ser classificada – e daí elas se tornaram também passíveis de fiscalização, controle e taxação. O nosso atual mundo das bebidas alcoólicas fermentadas é o resultado de séculos de “engavetamento”, padronização, globalização de técnicas e ingredientes, industrialização e massificação, tornando elas cada vez mais distantes de sua origem, utilização tradicional e ou mesmo “razão de ser”.

É: antes da humanidade classificar, normatizar e padronizar as bebidas alcoólicas segundo regras de mercado, denominações de origem, características e até mesmo “normas de pureza”, o mundo dos fermentados alcoólicos era muito menos burocrático, e arrisco dizer, muito mais autêntico e divertido. As bebidas elaboradas e consumidas por nós tinham não só funções inebriantes, mas nutritivas, medicinais e sagradas. E a maioria delas tinha nome próprio. Pois pra quem não se deu conta ainda; mesmo essa nossa referência de chamar tudo de vinho já é uma re-nomeação de coisas a partir do nosso mundo conhecido.  Culturas renomeiam coisas a partir de sua própria linguagem, e hoje temos a referência da língua portuguesa em detrimento das  linguas indígenas. Exemplo? O Cauim, fermentado de mandioca, foi chamado pelos portugueses quando chegaram aqui de vinho dos índios, e o nanauí, um fermentado alcoólico de abacaxi, de vinho de abacaxi. Que é como conhecemos hoje. 

26/8/2021
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