Bebidas ancestrais indígenas.
Bom, vamos do começo. Já falei isso aqui várias vezes e vou continuar repetindo: o Brasil não nasceu com a invasão européia, e muito antes do Brasil se chamar Brasil, muitos povos viviam aqui e sim, faziam suas biritas, vinhos, fermentados alcoólicos, cervejas, que na época, óbvio, não tinham classificações de “vinho, cerveja, hidromel”, mas sim nomes próprios. Essa coisa de falar em vinho de, cerveja de, blá, veio depois da língua portuguesa, que começou a identificar, por exemplo, bebidas parecidas e chamar de vinho, de cerveja, e por aí vai.
“Parece certo que algum deus Baco passou a estas partes a ensinar-lhes tantas espécies dele, que alguns contam trinta e duas. Uns fazem de fruta que chamam acaiá, outros de aipim, outros de macaxeira, outros de pacova, a que chamam pacouí, outros de milho, a que chamam abativi, outros de ananás, que chamam nanavi, e este é mais eficaz, e logo embebeda. Outros de babata, que chamam jetivi, outros de jenipapo, outros que chamam de bacutingui, outros de beiju, ou mandioca, que chamam tepiocuí, outros de mel silvestre, ou de açúcar, a que chamam garapa, outros de cajú, e desde em tanta quantidade que podem-se encher muitas pipas, de cor a modo de palhete. Deste vi eu uma frasqueira, e se não fora certificado do que era, afirmava que era vinho de Portugal”. Crônica da Companhia de Jesus,de Simão de Vasconcelos, 1663.
Opa, sim, é isso mesmo que vocês estão pensando. As tradições dos nossos povos da pré-colônia se fundiram com as tradições alimentares – ou no caso etílicas – dos europeus, que deu origem a uma mistura deliciosa que fez com que nossa história no mundo dos fermentados seja riquíssima. Não é à toa que temos vinho de uva no rio grande do sul, vinho de jaboticaba em Minas e São Paulo, vinhos de cajú no nordeste e vinhos de açaí no norte. Cervejas, e aqui eu falo de cerveja no conceito ancestral, de fermentado alcoólico proveniente de raízes ou grãos – também sempre fizeram parte da nossa história, e continuam. Desde os ritualísticos cauins indígenas de mandioca mastigada aos caxiris e aluás de frutas ou de milho ou de raízes que se faz e se consome até hoje em muitos lugares, embora, obviamente, cada vez menos.
Imaginem a quantidade de frutas pra se fazer vinho e a quantidade de raízes pra se fazer cerveja. Sem falar nas milhares de abelhas e meles pra fazer hidromel, e todas as cruzas entre frutas e mel e frutas e raizes, e raízes e mel, e frutas e ervas, e ervas e mel. Imaginem a quantidade de técnicas de cada etnia indígena que já viveu por aqui e passou a tradição pra frente, e a quantidade de novas receitas que povos vindos do México, do peru, da Europa, trouxeram.
É de explodir a cabeça, pois a gente tem as cervejas insalivadas como o próprio caium ( que usa a ptialina da saliva pra transformar o amido e fazer com que ele fermente ) da mesma maneira que os peruanos tem a chicha. E tanto aqui quanto em outros países da America latina temos cervejas de milho, milho insalivado, milho germinado, mandioca cozida e insalivada, enfim. A gente tem vinhos de açaí e de jaboticaba e de jenipapo e de jurema, e os europeus tem vinhos de uva, de maçã, de pêra, de framboesa, de mirtilos. O limite do que foi influencia, do que foi fusão, do que já existia e do que passou a existir, obviamente que é um longo caminho de pesquisa. Mas por exemplo, temos na Amazônia a mesma técnica de usar fungos na sacarificação dos beijus de mandioca, pra depois fermentados, da mesma maneira que no Japão se faz com o arroz. E temos registros de etnias indígenas que eram vidas consumidoras de mel fermentado aqui no nosso Brasilzão. Até mesmo registros dos primeiros cronistas já relatam a presença de hidromel por aqui, da mesma maneira que lá nos confis do mundo, na Noruega e Dinamarca, a galera tava fazendo hidromel abaixo de zero nos barcos vickings.
É. Daí a gente vai hoje num mercado e tem vinho argentino de malbec e umas pseudo cerveja Pilsen pra escolher. Sommelier não admite que vinho pode ser de outra fruta, pouca gente já provou um caxiri ou um aluá na vida, e até quando a gente viaja pra lugares que a gente julga que as tradições alimentares e etílicas estão mais preservadas – como a amazonia, por exemplo – a gente dá de cara com o que? Com a cervejinha estupidamente gelada nos botecos, e só.
São séculos de matança aqui nesse país, literal, de gente mesmo, povos, etnias e línguas inteiras que desapareceram… e cultural, sobretudo, pois a lavagem cerebral continua sendo de feita e de maneira muito bem feita, seja pela televisão, seja pelo influencer na sua pagininha do instagram, seja pelos anúncios publicitários. Champagne é chique, caium é nojento. Vinho é de uva, francês, de Pinot Noir. Vinho de jabuticaba é coisa de caipira. E por aí vai, posso ficar nesse assunto aqui durante anos.
Aliás, pra quem pensa que o desaparecimento dessa variedade enorme de bebidas alcoólicas é coisa desse século, sinto informar que não. Claro que a cultura industrial do século XX soterrou de vez, mas isso vem lá da origem das coisas. Fermentados alcoólicos de abacaxi, caju, jenipapo, batatas doces, milho, banana, mel, mandioca e suas infinitas derivações de mastigação, fervura, diluição e misturas eram encontrados em todo o território brasileiro, mas a incidência começou a diminuir ou desaparecer logo com o surgimento e crescimento dos primeiros centros urbanos.
Vamos lembrar que a comida e a bebida de verdade tem uma ligação muito forte com as estruturas social, culturais e agrícolas tradicionais, ou seja, com a terra, com o plantio, com o local, com o autóctone. Quanto menos gente na terra, menos gente inventando bebidas, ou então, reproduzindo bebidas tradicionais daquela região. E todo mundo sabe que quanto menos gente produzindo local e em pequena quantidade, mais massificação e padronização vai existir. Não é a toa que todo mundo fazia seu pão em casa e agora todo mundo compra o mesmo pão de saquinho. Que todo mundo vazia seu vinho ou seu fermentado de fruta em casa, e hoje todo mundo compra o mesmo vinho industrializado. Essa equação do “menos gente produzindo, mais padronização do sabor e das receitas” é batata.
Bom, juro que nos próximos episódios eu falo mais sobre isso, e até explico um pouco melhor sobre essas classificações de bebidas ancestrais, que acabam confundindo muito muita gente.