O movimento do vinho natural na América Latina.
Nos últimos anos, o movimento do vinho natural surgiu como resposta a padronização internacional e a industrialização massiva dos vinhos em muitos países do mundo – assim como na América Latina, promovendo o resgate de tradições quase esquecidas por esses países.
Pequenos produtores estão revivendo práticas artesanais, valorizando a fermentação com leveduras indígenas, vinificando sem insumos enológicos, replantando variedades tradicionais, desenvolvendo ânforas de barro baseadas em tradições locais, além de focar em cultivos sustentáveis e ecológicos. Essas iniciativas não apenas recuperam variedades ou técnicas mas também celebram a diversidade e a autenticidade do terroir latino-americano, tão repleto de riquezas históricas e mestiçagens ao longo da história.
Enquanto a indústria mundial do vinho busca padrão, eficiência e mercado, o vinho natural emerge como um contraponto, trazendo à tona histórias de resistência cultural e identidade regional de cada país, resgatando inclusive bebidas alcoólicas de origem indígena anteriores à chegada do vinho de uva, como as chichas – elaborados à partir de milho e os cauins – elaborados a partir de raiz de mandioca. Uma extensa gama de fermentados alcoólicos de mel, raízes, seivas e frutas nativas fazem parte desse legado cultural alcoólico pré-colonial esquecido por seu próprio povo, e muitas iniciativas modernas de produção artesanal dessas bebidas podem ser encontradas dentro dos circuitos relacionados ao movimento do vinho natural latino americano.
O movimento do vinho natural tal como conhecemos teve origem na França, na década de 1980, tornando-se expressivo por volta dos anos 2000. Foi nessa mesma época que as primeiras iniciativas relacionadas ao vinho natural surgiram na América Latina.
Países como Chile e Argentina lideraram o movimento com pequenos produtores redescobrindo uvas como a País e a Criolla Chica. No Chile, projetos como o do francês Louis-Antoine Luyt impulsionaram o renascimento do Pipeño, um vinho simples e histórico feito com práticas tradicionais e madeira chilena – o Raulí. Na Argentina, a redescoberta das uvas crioulas e a adoção de práticas biodinâmicas deram origem a vinhos que celebram o vínculo entre terra e cultura, com pioneiros como Antonio Cabezas, retratado no filme Mondovino, de Jonatan Nossiter. No Perú, vemos Pepe Moquillaza e o resgate de uvas “pisqueras” ( utilizadas para destilação em Pisco ) na elaboração de vinhos naturais. No Brasil, desde o final da década de 90 produtores como Luis Henrique Zanini, Álvaro Escher, Marco Danielle, Juan Carrau, Zulmir DeLucca e Acir Boroto criaram as bases para a produção moderna de vinhos naturais no país.
Muitos nomes importantíssimos relacionados à produção de vinhos naturais poderiam ser citados aqui, em diferentes países com Bolívia, Uruguai, México, Chile, Brasil, Argentina, Perú. Centenas de produtores emergiram no cenário do vinho nas últimas décadas, assim como muitos bares de vinho, restaurantes e feiras especializadas abriram suas portas ao público.
A Feira Naturebas, uma das pioneiras no setor de vinhos naturais da América Latina, nasceu em 2013 em São Paulo e mostra o crescimento vertiginoso do movimento natural nesses países. Em pouco mais de uma década se tornou a maior feira relacionada ao tema, atraindo cerca de 200 produtores de todo o mundo ( majoritariamente latino-americanos ) e mais de 3000 visitantes, consolidando o Brasil como a porta de entrada para a América Latina. Profissionais e importadores provenientes principalmente da Europa e Ásia chegam em busca de conhecimento e bebidas naturais latino americanas. Vale destacar outras feiras voltadas ao universo do vinho natural, importantes da atualidade como a Salvage, na Argentina, a Chanchos Deslenguados, no Chile, e a Volver Volver, no México.
Embora o movimento do vinho natural na América Latina compartilhe bases ideológicas com sua contraparte europeia – ele não é o mesmo nos dois continentes. Descendemos de diferentes povos e aprendemos na escola a versão da história sob a ótica de quem foi colonizado, e não de quem coloniza. Aprendemos desde cedo que o que o de fora é melhor e de que somos vira latas em um mundo que não valoriza nossas tradições alimentares, culturais, religiosas e agrícolas.
O movimento do vinho natural na América Latina nasce de uma história de colonização e apagamento cultural, onde as tradições locais foram muitas vezes marginalizadas em favor de padrões e valores externos. Este movimento não é apenas um manifesto contra práticas industriais, mas uma declaração de identidade e resistência.
Para nós, a história foi contada sob a ótica do colonizado, moldando um imaginário de inferioridade que permeia diversas esferas culturais, inclusive a alimentar e agrícola. Por séculos, as tradições locais foram desvalorizadas em favor do que era importado, europeu ou estrangeiro – e as uvas tradicionais vistas como “inferiores” em relação às variedades “finas” europeias, foram relegadas a vinhos de baixa reputação, enquanto os métodos artesanais de vinificação foram substituídos por técnicas industriais introduzidas pelas multinacionais.
O resultado foi uma desconexão gigantesca entre o vinho e sua relação histórica com a cultura e os costumes locais – isso sem falar do apagamento do consumo e elaboração de outras bebidas alcoólicas tradicionais como chichas, hidromel, cauins e fermentados de frutas nativas. A padronização imposta pela industrialização do vinho na segunda metade do século XX reforçou a ideia de que apenas o que atendia aos padrões globais de mercado tinha valor, apagando práticas ancestrais que refletiam as realidades e diversidades do continente.
O movimento do vinho natural na América Latina representa um ato de resistência contra essa narrativa de apagamento. Ele não apenas rejeita a industrialização e o uso de insumos químicos, mas também promove um retorno às raízes culturais. É um movimento que visa restaurar o orgulho da identidade latino-americana, valorizando suas tradições agrícolas, suas variedades locais e suas histórias. Diferente do movimento europeu, que muitas vezes se ancora na recuperação de uma história já consolidada, o movimento do vinho natural na América Latina tem como desafio construir uma identidade própria dentro do mundo do vinho, em um contexto onde muitas das tradições foram apagadas ou subjugadas.
O movimento na América Latina não é apenas uma resposta ao mercado, mas uma revolução silenciosa que questiona as narrativas de inferioridade cultural e agrícola, uma decolonização de pensamento e comportamento relacionado ao comer e ao beber. Ele propõe que o vinho não seja apenas um produto, mas um veículo para contar histórias, preservar tradições e reconectar comunidades com suas raízes – mesmo que essas sejam mais profundas e antigas que a própria história das videiras em nosso solo.
O movimento do vinho natural no continente é um lembrete que podemos encontrar força no orgulho do que é local, mestiço, diverso e, acima de tudo, único. É definitivamente um movimento que transcende o vinho, transformando-se em um manifesto cultural e identitário para toda a América Latina.