Comida, Sustentabilidade, Divagações, Vinhos

Leveduras Selvagens

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Eu descobri recentemente que a gente acha que as pessoas são suas amigas até elas te chamarem pra falar sobre um assunto, na abertura da palestra do cara que mais entende sobre o assunto “no mundo”.  Então muito obrigada, pessoal da organização da Masterclass do Sandor Katz. Amo vocês, minha insônia manda lembranças. Me deram essa honra e responsa absurda nas mãos, de fazer a abertura da palestra do Sandor nessa quinta que passou.

O problema é que não sou uma especialista em fermentados. Na verdade ainda nem sei porque me chamaram para fazer essa abertura. Sou daquelas pessoas que vez ou outra mata um Kefir, esquece de dar comida pro levin, tenta fazer vinho e ele vira vinagre. 

De qualquer maneira eu gosto de cozinhar. Talvez seja por isso que me chamaram. Tenho um restaurante já há dez anos: planto e colho boa parte do que sirvo na mesa, só trabalho com pequenos produtores ao redor da cidade de São Paulo, os ovos e o leite vem da nossa casa, não temos menu fixo. Não  trabalho com produtos refinados ou industrializados, e todos os insumos sem exceção são sazonais, artesanais e orgânicos. Lá fazemos os processos fermentativos básicos, como iogurte, coalhada, conservas lactofermentadas, vinagre, pães. Fazemos conservas das coisas que não damos vazão no dia a dia, trabalhamos com pães de fermentação longa pois acreditamos que são melhores para a digestão e sabor, fazemos iogurte e coalhada do leite cru que ordenhamos da nossa cabra e reaproveitamos o vinho que sobra nas taças pra fazer vinagre. Por aí vai. O básicão.

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Como a idéia lá no restaurante fazer tudo do inicio e não trabalhar com nenhum produto industrializado, a gente acaba mesmo tendo que lidar com muitos processos fermentativos ao longo do caminho. Afinal, a fermentação é um dos processos tradicionais mais antigos, importantes e presentes na maioria das culturas alimentares do mundo, e não tem como partir para um projeto de comida orgânica e sustentável, que resgate processos artesanais e tradicionais, sem cair no mundo das fermentações. Mas eu fazer meu vinagre ou fazer meu pão não me torna apta para falar a fundo sobre fermentações. Então eu continuo me perguntando porque me chamaram pra fazer essa abertura.

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Tem um detalhe que esqueci de mencionar: além da formação em gastronomia, tenho formação em Nutrição. Escondi isso muito tempo dos amigos pois tinha vergonha do que a Nutrição tinha se tornado, principalmente na minha época: nos anos 2000 a faculdade se dividia em matadores de ratinhos para experiências em laboratório ou médicos de regime. E eu nunca gostei nem de matar ratinhos, muito menos de fazer regime. Mas sempre gostei da ideia de que você é o que você come. E por mais que a Nutrição tenha sido um período abafado da minha história, a gente tenta sair dela mas ela não sai de você. Talvez seja por isso que virei essa chata militante dos orgânicos, criados soltos e afins: é impossível pensar em nutrir, pensar em saúde, pensar em gastronomia, sem cair na questão da alimentação industrial, da agricultura convencional, da desconexão que existe hoje entre as pessoas e o seu alimento.

Exemplo? Boa parte da população sofre problemas de saúde diversos por conta de uma alimentação industrializada que simplesmente matou nossa flora intestinal – responsável não só pela gente ir ao banheiro todos os dias, mas pelo funcionamento geral do corpo e até mesmo pelo nosso humor. O sucesso dos dos probióticos em geral vem justamente daí: dar uma ajuda para repopular as comunidades de bactérias do nosso intestino. Bom, bactérias, Kefir, lactofermentados, probióticos.  Entramos nos fermentados de novo. Mas também não acho que seja por isso que me chamaram pra essa apresentação.

Outra coisa interessante que lembrei, falando agora sobre fermentados:  lá na Enoteca a gente só serve vinho natural, orgânico ou biodinâmico. Na verdade a galera me conhece muito mais pela chatice com o vinho natural do que pela chatice com a comida. E sim, olha a coincidência, o vinho é um fermentado. A gente pega a uva, amassa, e as leveduras fazem o que chamamos de fermentação alcoólica – um processo onde basicamente se come açúcar e se expele gás carbônico e álcool. Uma das minhas grandes bandeiras, inclusive, é a da vinificação natural, com o mínimo de intervenções. Pois hoje em dia, quem não sabe, os vinhos são feitos de maneira industrial: agrotóxicos no campo e aditivos na adega. Até o processo de fermentação é artificial, feito por leveduras selecionadas. E eu sou fã incondicional das leveduras selvagens, aquelas que estão no ar, na adega, nas roupas, nas barricas de madeira, no ar agora mesmo – e que são as responsáveis por fermentar o vinho naturalmente, de maneira expontânea, dando um banho nas certinhas e previsíveis leveduras selecionadas. Essa galera toda que vive por aí é que inclusive o faz com que as fermentações de pães, queijos, chocolate, vinho, conservas, seja aconteçam espontaneamente.

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Fora que eu adoro esse termo. Leveduras selvagens. Se eu tivesse algum talento pra música, meu grupo se chamaria Leveduras Selvagens. Certeza. Fiz até uma camiseta um dia pra minha feira de vinhos anual: “minha levedura é selvagem.” Todo mundo queria uma. A idéia era dizer de maneira engraçada que eu não iria fermentar de acordo com o que o sistema vigente alimentar queria. Eu iria fermentar da maneira que eu bem entendesse, de maneira expontânea. Estamos falando aqui metaforicamente, claro… e pra falar a verdade eu já me perdi nas divagações e continuo não sabendo porque estou aqui falando em fermentação ou banda de música.

Mas já que falamos em “sistema alimentar”, esse talvez seja um ponto interessante. Os hippies fizeram todo um movimento de agricultura orgânica na década de 60 pois plantar sua comida sem depender da indústria alimentícia ou do agronegocio é um ato político de contestação. Mas a gente continua aqui até hoje inserido num sistema de indústria alimentícia e de agronegócio, talvez até muito pior do que na década de 60. A gente terceirizou nossa alimentação, não sabemos mais a origem das coisas, não temos mais ideia da sazonalidade, tudo vem embalado, em saquinho, em pacotinho. A gente parou de cozinhar, de sentar na mesa, e colocamos pra dentro do corpo mais aditivos químicos do que nutrientes.

Então … quando eu paro pra pensar…o simples ato de você cozinhar sua comida, fazer o seu pão em casa, fermentar sua coalhada ou seu iogurte, por menor que seja, continua sendo um ato político. Num mundo onde compramos tudo pré pronto, onde vivemos uma vida artificial e nos alimentamos de comidas e sentimentos artificiais – Instagram tá aí pra provar – fazer um chucrute você mesmo é um ato de rebeldia e liberdade. Se você plantar seu repolho, então, anarquia total.

Quando paramos em nossa cozinha, cortamos um repolho e usamos uma técnica de conservação que tem séculos de tradição, não estamos só cozinhando. Isso faz com a que a gente se renda à um mundo de reflexões sobre os processos alimentares, sobre a saúde, sobre os micro-organismos, sobre a medicina , sobre os conhecimentos ancestrais, sobre a nossa vida. E não sou eu que estou falando isso. O próprio Michael Pollan, que fez a introdução do livro do Sandor, é que chegou a esse conclusão. Ou seja, a melhor ideia de todo esse discurso nem foi minha. Mas talvez seja exatamente por isso que me colocaram para abrir essa palestra dele. Pois você não precisa ser um expert em fermentação – e tudo bem matar seu Kefir de vez em quando, não se culpem – pra entender que no fundo, no fundo, não estamos aqui falando de chucrutes, de queijos, de vinhos ou de bactérias.

Estamos falando de uma retomada de consciência sobre a nossa alimentação, nossa cultura, nosso estilo de vida, nosso corpo, nossa agricultura, nossa autonomia, nossa saúde. Eu continuo achando que quando eu ficar velhinha e montar uma banda, ela vai se chamar leveduras selvagens. Pois a gente precisa mesmo de mais leveduras selvageriando por aí: precisamos de mais  autenticidade e espontaneidade no mundo.

Então….  fermentem. Fermentem. Fermentem o que quiserem, da maneira que quiserem, a hora que quiserem. Fermentem literal e metaforicamente. Vamos tentar ser um pouco mais como leveduras selvagens e menos como as tristes leveduras de laboratório. Vamos ser mais expontâneos, mais reais, livres desse sistema industrial alimentar que nos cega e nos deixa doentes. Vamos tentar ser menos previsíveis e menos conformados com todas as coisas. Não temos que aceitar tudo o que tentam nos empurrar goela abaixo. E temos sempre que lembrar, que tomar as rédeas da nossa alimentação, é na verdade, tomar as rédeas da nossa própria vida, e também da nossa própria consciência.

11/12/2017
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