Comida, Divagações

Fogão à lenha

 

Tenho a sorte de ter um fogão a lenha dentro da minha cozinha. Confesso que quando visitei a casa que moro pela primeira vez, o fogão me chamou mais atenção que quase todo o resto. Não cresci no interior, nunca tive fogão à lenha em casa e quando era criança a gente ficava perto do forno à gás mesmo, com os pezinhos cheios de meias, no invernão, pra esquentar enquanto assava alguma coisa.

 

Mas mesmo sem o apego emocional à lenha, talvez todos nós já tenhamos impresso na memória esse apego histórico, impossível de arrancar da gente, principalmente de quem trabalha com comida. A comida de fogo é diferente. O sabor muda, o tempo muda, é mais uma troca do que uma imposição. Quando você acende um fogão à lenha, você não acende só o fogão. Você aquece a casa, você deixa tudo com aquele cheirinho de madeira queimada, você mantém água quente pro café, você transforma a madeira em cinzas e essas cinzas podem ser utilizadas depois na horta. A madeira, ela tem que ser cortada, seca, armazenada, e depois ainda tem toda delicada da arte de acender as chamas, aquele baile todo da madeira, do oxigênio e da manha de cada um em fazer isso. Eu mesma, apanho até hoje, mas estou pegando o jeito.

 

Na lenha, as coisas demoram mais, você está ali no tempo da natureza, e não no tempo humano. É quase uma meditação, pois requer atenção plena ao cozimento – e não existe nada que te traga mais para o presente que ficar no comando de panelas no fogo. A lenha requer cuidado e atenção o tempo inteiro, é uma interação constante da pessoa, do fogo e da panela. Não dá para manter distância, você tem que estar ali e pronto. Sem pressa, sem correria, sem distrações. Nostalgias pós modernas à parte, muito mais do que fazer uma ode à volta do fogão à lenha em todas as cozinhas – o que seria, no mínimo, ingênuo da nossa parte – podemos ao menos refletir em cima disso, como parte de um passado ou de um presente que nos ajuda a colocar os pés no chão, aterrar, acalmar, prestar atenção no tempo das coisas. Nós não respeitamos mais o tempo das coisas: na maioria das vezes nem por opção, mas por condição.

 

Nós não sabemos mais qual é esse tempo, na verdade, perdemos a referência das medidas, da calma, dos processos. Não damos tempo nem para nós mesmos, não temos mais tempo para digerir nossos pensamentos e sentimentos, quiçá preparar ou digerir a comida. E tudo que não digerimos, se acumula. Acumula em sentimentos ruins, acumula em doenças, acumula em excesso de peso, acumula em dores nos ombros, acumula em tristeza, acumula em vazio, e nos coloca em constante desconforto, em desequilíbrio.

 

Parte de tudo o que não processamos é por não entendermos mais que as coisas precisam de tempo. Tempo. Pura e simplesmente, como o tempo que demora para a madeira secar, para a chama acender, para a água ferver, para o fogo virar brasa, para a brasa virar cinza, para a cinza virar adubo, para o adubo virar terra, para a terra virar vida. 

31/5/2018
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