Reaproveitamento na cozinha.
Quem nunca comeu comida requentada do almoço ou fez aquele clássico soborô do dia anterior, que jogue a primeira pedra. Eu mesma passei minha infância comendo pizza fria do domingo e café com leite na manhã de segunda – ok, pizza e café com leite pode ser um gosto adquirido, mas seja por praticidade, preguiça, falta de grana, de noção de cozinha ou consciência ambiental e social mesmo, reaproveitar sempre fez parte do nosso dia a dia. Só que comer na janta o que cozinhou no almoço ou fazer aquele delicioso bolinho de arroz amanhecido já não basta nos dias de hoje: aproveitamento e reaproveitamento de alimentos é um conceito muito maior do que isso. Se pararmos para pensar, a gente desperdiça muito mais do que deveria e aproveita muito menos do que poderia. Cascas, ramas, alimentos feios, sementes, plantas que a gente não conhece, embutidos, peles, caldos, conservas, desidratados, infusões, temperos, doces, fermentados. Desde o plantio até a última garfada, é possível usar a boca e o cérebro para tornarmos nossa cozinha mais sustentável, mais humana, mais barata, mais criativa, mais divertida, mais consciente, mais saudável e mais diversificada.
O mais doido é que sempre reaproveitamos, conservamos, plantamos, compostamos, usamos o que tínhamos disponível, acompanhamos as estações e a sazonalidade. Sim, houve um tempo em que fazer seu próprio molho de tomate, moer seu café ou fazer seu pão de fermentação em casa não era coisa de hipster ou de hippie. Boa parte do que são chamadas hoje técnicas tradicionais ou ancestrais de cozinha nada mais eram do que maneiras de usar os ingredientes da melhor maneira, conservá-los, guardá-los em épocas de entressafra, transportá-los ou deixá-los mais digestos. Temos sempre que lembrar que a história da alimentação se baseou em dificuldades, escassez, viagens, fusões culturais, guerras, condições adversas no geral que fizeram com que as populações desenvolvessem técnicas e receitas para aproveitar da maneira mais inteligente os recursos naturais e a criatividade humana. Foi só no século XX, mais especificamente depois da segunda metade, que a lavagem cerebral da indústria alimentar e do “estilo de vida moderno” fizeram com que a gente esquecesse a maior parte das coisas e se desconectasse completamente de uma vida saudável, terceirizando nossa alimentação, nossa saúde, nossos relacionamentos. Vivemos numa época em que acreditamos que “não conseguimos”, “não temos tempo”, e para todos os problemas existe uma pílula, um remédio, uma palestra ou uma loja que venda a solução mágica.
As pessoas passam horas dentro do carro e depois pagam academias caríssimas para poder andar à pé. Se recusam a comprar alimentos orgânicos pois “é caro”, mas gastam quantias exorbitante no médico. Isso sem falar nos problemas de doenças modernas que estão absolutamente ligadas ao nosso estilo de vida e alimentação: câncer, degenerativas em geral, depressão, ansiedade. Saímos de uma época onde as doenças eram “externas”, causadas por contaminação, condições sanitárias precárias e falta de recursos contra vírus e bactérias, para uma época de doenças “internas”, causadas quase que única e exclusivamente pelo estilo de vida e alimentação. Quando paramos para pensar nisso, é assustador, pois percebemos o quanto fomos manipulados e quanto da nossa autonomia em relação à nós mesmos nos foi tirado. O ser humano em seu estado natural é saudável e feliz – qualquer coisa que saia disso é sinal de algum tipo de desequilíbrio – e isso não é natural. A doença não é natural, embora tenhamos nos acostumado a uma época em que o normal é estar doente: dores, sobrepeso, fadiga, desânimo, síndromes diversas, o pavor do mundo invisível das bactérias, a histeria da esterelidade. Somos tão condicionados a achar que não somos autônomos em relação à nossa saúde, que quando dizemos é só mudar o que você come, por exemplo, temos a tendência de não acreditar. É mais fácil acreditar em remédios caros, médicos famosos, televisão, livros de auto ajuda, dietas milagrosas. Vivemos a época da necessidade de gurus, pessoas que nos guiem, pois esquecemos que somos gurus de nós mesmos.
É necessário reaprender o que um dia era parte do cotidiano. Nos dias de hoje, muito mais que um resgate por nostalgia, se faz necessária essa consciência pelo estado de calamidade que se encontra a saúde do ser humano e a saúde do planeta. E começar pela boca é a melhor maneira de mudar as coisas, seja a gente mesmo, seja o mundo. Gastar menos dinheiro, ser mais auto-suficiente, depender menos dos mercados e indústrias alimentares, ser mais saudável, deixar o planeta mais saudável, limpar o corpo e a mente, reestabelecer relacionamentos e hábitos, adquirir mais consciência corporal, ambiental e social. O pacote é completo, e de quebra você ganha em sabor e diversão.