Vinhos

Vinho de cajú.

Quem acompanhou minha última viagem pro Rio Grande do Norte  já está por dentro das nossas idéias mirabolantes de fazer vinhos e espumantes de caju. Pra quem não acompanhou, pode ir lá no #criadosoltocaju , que tá tudo lá.

Mas vamos do começo. Vinho de caju?? É, gente, vinho de caju.

Brasilzão faz vinhos de cajú a muito mais tempo do que vocês imaginam. Antes até dele se do Brasil se chamar Brasil.

Nossos indígenas tem uma tradição de fermentados alcoólicos riquíssima. Uma infinidade de fermentados alcoólicos de cajús, cajás, jabuticabas, mandiocas, milhos, mel, ervas, cascas, raizes.

Temos registro de elaboração de hidromel e Melomel em nosso território antes da chegada dos europeus. Vinhos de jaboticaba, vinhos de caju que eram fermentados em potes de barro, debaixo da terra, como fazem os georgianos com a uva, fermentados de beiju mofados que utilizavam a mesma técnica do sakê japonês, cervejas ensalivadas, germinadas.

Vamos lembrar da boa e velha premissa do goró:  a gente fermenta algo quando tem esse algo em abundância. Vinho e todos os fermentados alcoólicos também são uma maneira de conversar os alimentos, conservar as safras de frutas frescas. Da mesma forma que as conservas de açúcar, as conservas láticas, você recebe ajudinha dos micro-organismos do ambiente e eles transformam o alimento, fazendo com que ele se conserve por mas tempo. Por isso o nome conservas, né gente. Geléia é conserva. Picles é conserva. Chucrute é conserva, vinho…. Pois é, pode parecer estranho, mas vinho também é uma conserva, se você pensar que você fermenta uma fruta que duraria menos de uma semana fresca, pra ela “durar” em forma líquida por anos e anos.

Claro que, pausa, esse conceito de conservar e estocar alimentos surgiu só depois do advento da agricultura, que fez com que passássemos de nômades coletores e caçadores pra…. sedentários comendo sorvete na frente da televisão. Brincadeira. Que passássemos de nômades à agricultores, povos fixos que decidiram domesticar as plantas e os animais, plantando e colhendo o que comem pra sobreviver.

Quem já teve a brilhante ideia de plantar uma horta em casa sabe: a não ser que você tenha toda uma técnica de plantar exatamente um pouquinho de cada coisa, você termina sempre com excedente. Aquele monte de couve, aquele monte de alface. Sem contar nos pomares. Aquele mundo de jabuticaba, aquele mundo de pitanga, aquele mundaréu de caju, de uvaia, de abacate no quintal. Essa mistura de uma oferta abundante na natureza e a invenção da agricultura fez com que o homem começasse a pensar no que fazer com aquele monte de coisa que sobrava, afinal, se ele conseguisse “estocar” e “conservar” o que sobrava, ele teria comida pra todo ano e não precisaria trampar tanto procurando comida. Pois é. Bem vindos à maravilhosa era das técnicas de conservação dos alimentos. Curas, salgas, desidratações, fermentações alcoólicas, láticas . Queijos, vinhos, chucrutes, ao foram possíveis depois que o homem deixou de ser nômade.

Eu falei tudo isso pra chegar num ponto: o que conhecemos como bebidas alcoólicas foi mudando ao longo do tempo e ao longo das civilizações. Vamos pensar aqui comigo: se você tinha uma tribo nômade que não se fixava em lugar nenhum, qual o intuito de fazer um alimento ou um vinho e estocar durante anos? Pois é. Por isso mesmo que as populações nômades não tinham essa de ficar guardando um mundaréu de comida. Se coletava, caçava…. E sim, se bebia, mas em geral as fermentações alcoólicas eram mais rápidas ( questão de dias ) e todo conteúdo era bebido rapidamente.

Até mesmo se pensarmos nos aldeiamentos indígenas Brazucas da pré colônia, que não eram nômades, a visão do que era uma bebida alcoólica era muito diferente. E não só pela questão de ser ou não uma maneira de conservar os alimentos. Para a maioria das populações indígenas o alimento e a bebida eram a mesma coisa, e as bebidas alcoólicas fermentadas não  tinham apenas uma função inebriante, mas também nutricional e sagrada.

 

BEBIDAS ANCESTRAIS.

Boa parte do que conhecemos das bebidas alcoólicas ancestrais indígenas serviam de alimento e também de conexão com o divino – o próprio exemplo dos cauins de mandioca ou de milho, que eram “comidos” nas primeiras horas como mingau e depois que ia ficando alcoolico, era destinado aos rituais de cauinagem, sempre relacionados a espiritualidade e a coletividade.

Da mesma maneira, boa parte dessas fermentações ancestrais indígenas que conhecemos pelos registros eram feitas em poucos dias, eram fermentações alcoólicas rápidas e com grau alcoólico baixo, consumidas se não de uma vez só, em poucos dias também.

Bom, eu dei toda essa volta pra começar a contextualizar um pouco a questão da bebida alcoólica na história e na nossa história.

Voltando a premissa do goró, sobre se fermentar o que existe em abundância. Povos que tinham abundância de mel fermentavam mel, povos que tinham abundância de uva fermentavam uva, povos que tinham abundância de maçãs, fermentavam maçãs. Anrãn: o que é uma sidra que não um vinho de maçã? Ou um poiré, que não um vinho de pêras? Eles apenas hoje em dia  tem um nome, um feitio específico e uma tradição que, aliados a uma legislação, nos fazem identificar esses produtos mais com seus nomes próprios do que pelo genérico “vinho de maçã”. Mas na Alemanha, por exemplo, existem ainda os “Apple wines”, ou seja, vinhos de maçã.

Sim. E eu digo isso pra lembrar algumas coisas:

Ao longo da história a gente foi legislando, regulamentando, globalizando, padronizando a alimentação e as bebidas alcoólicas. O que conhecemos hoje como cerveja, vinho, sakê, são versões standarizadas e globalizadas e genéricas de bebidas que, um dia, tiveram TODAS nomes próprios.

Aqui mesmo. Nossos vinhos de caju, nossas cervejas insalivadas, cada qual tinha um nome próprio, dado pelo povo que a produzia. Isso aqui e em todo resto do mundo. Só depois que a galera foi tendo a necessidade de classificar, regulamentar… muito disso na idade média, por necessidade comercial e de taxação.

Até mesmo falar o que é vinho, cerveja, etc. , é um conceito moderno. Numa história de 10 mil anos de agricultura, falar da idade média está logo ali. E mesmo assim, o que consideramos vinhos e cervejas ancestrais não tem nada a ver com o conceito de vinhos e cervejas que temos hoje em dia.

Vai dizer, é bem doido a gente pensar que na categoria “cerveja”, por exemplo, se encaixaram todas as bebidas já feitas no mundo, ao longo da história, com base de grãos, raizes, tubérculos. São milhares e milhares. E todas elas em algum ponto da história não chamavam cerveja, mas tinham nomes próprios dados pelas tribos, pelos povoamentos, pelo vilarejo, pela família, pelo país.

Importante. Quando falamos de vinho e cerveja ancestral não estamos falando dos conceitos modernos, legisladoras, industriais do que conhecemos como vinho e cerveja hoje em dia.

Para muitos autores, vinho é todo fermentado alcoólico com base na frutose. Cerveja, todo fermentado alcoólico com base em amido. Hidromel, obviamente, são fermentados alcoólicos com base no mel. Um autor que eu gosto muito e que fala bastante sobre isso é o Pascal Baudar. Os meninos da companhia dos fermentados também.  Vale a pena devorar os livros todos deles.

VINHO É SÓ DE UVA?

Vinho ser só de uva ou cerveja precisar ter malte é coisa moderna e muito mais ligada as classificações, cultura local e regulamentações do que propriamente à história. O próprio nome “vinho” parece ter uma raiz mais antiga do que o cultivo da videira, por mais que a sommeliezada ai torça o nariz. Já se denominava “vena” o licor sagrado das escrituras indianas védicas, e desse “vena” , no sânscrito, surgiu a palavra que originou depois a palavra  “vinho”, em diversas línguas. Na época, inclusive, lá na Índia védica, ele se referia a uma bebida feita de plantas que aproximava os homens dos próprios deuses – ou seja, a origem da palavra vinho parece estar muito mais ligada a uma bebida fermentada com efeitos psicodélicos, como a ayauasca e a jurema, do que propriamente à uva.

Alias, se fala “vinho da jurema”, também. Qualquer mosto fermentando na linguagem química é chamado vinho. Na Espagiria e na alquimia, a fermentação das ervas é chamado de vinho vegetal.

Mas a uva é uma baita fruta que fermenta, cheia de açúcar e cheia de leveduras, sagrada pra muitos povos e muitas religiões, e se tornou uma das principais bebidas do nosso mundo porque…. Thanran. Ela é abundante e autóctone no continente que dominou nossa história moderna, gente. A Europa. Não que o vinho não venha já de muito tempo atrás lá das bandas mais Orientais desse mundão, como a própria Geórgia. Até porque o berço dele é lá, a mais de 8000 anos. Mas essa força do vinho com a uva como rainha, que originou nosso conceito, nossa maneira de beber e de plantar? teve muito a ver com a dominação europeia nos últimos vários séculos da história do mundo. De romanos a colonizadores portugueses, a uva está sempre presente. E inclusive, aqui no nosso caso, fez parte de todo o arsenal do colonizador, que trouxe pra cá a cultura do vinho e da vinha, em um continente onde não existem registros de vitis viníferas nativas.

E, importante lembrar… quando os europeus invadiram as Américas, começaram a dar nomes que eles já conheciam as coisas que eles não conheciam. Eles rebatizaram as bebidas locais, que tinham seus nomes próprios, de acordo com o que eles tinham no seu repertório linguístico. Então nanavi virou vinho de abacaxi, cauim virou cerveja de mandioca ou cerveja dos índios, e por aí vai.

Culpem os colonizadores por chamar tudo de vinho, então, e não eu.

Momento nerd. Vamos lá pra 1663, na Crônica da Companhia de Jesus, de Simão de Vasconcelos. Ele escreve:

“Parece certo que algum deus Baco passou a estas partes a ensinar-lhes tantas espécies dele, que alguns contam trinta e duas. Uns fazem de fruta que chamam acaiá, outros de aipim, outros de macaxeira, outros de pacova, a que chamam pacouí, outros de milho, a que chamam abativi, outros de ananás, que chamam nanavi, e este é mais eficaz, e logo embebeda. Outros de babata, que chamam jetivi, outros de jenipapo, outros que chamam de bacutingui, outros de beiju, ou mandioca, que chamam tepiocuí, outros de mel silvestre, ou de açúcar, a que chamam garapa, outros de cajú, e desde em tanta quantidade que podem-se encher muitas pipas, de cor a modo de palhete. Deste vi eu uma frasqueira, e se não fora certificado do que era, afirmava que era vinho de Portugal”.

Botei minhoca na cabeça? Bom. Essa era a idéia mesmo.

 

VINHO DE CAJÚ?

Mais de 32 tipos de “vinho” de frutas, milho e mandioca foram catalogados na época de Simão de Vasconcelos. Dá pra imaginar a riqueza disso, essa mistura de frutas e técnicas indígenas com frutas e técnicas européias…… e frutas e costumes e técnicas africanas, né, gente. Os africanos que vieram pra cá na condição de escravizados também deram seus toques culinários e alcoólicos em tudo isso. O próprio nome alua foi dado pelos africanos, no Brasil, as bebidas indígenas feitas de milho e de abacaxi que já existiam aqui. E a lógica é a mesma. Alua deve ter sido um nome genérico pra várias bebidas indígenas que os africanos não sabiam o nome.

Legal quando a gente pensa assim, né. Abre a cabeça pra um monte de coisa.Ok. Mas voltando pros vinhos de cajú.

Existem vários registros de fermentados alcoólicos de caju por esse Brasilzão afora. Se alguém está se perguntando, Caju é nativo, sim, brasileiríssimo, e o “mundo” só conheceu o caju depois que os europeus vieram pra cá e levaram a “maçã brasileira” – como alguns chamavam, pras Zoropa, pra Índia, e por aí vai.

No litoral do nordeste, é conhecido até hoje o mocororó, fermentado alcoólico de cajús feitos em potes de barro, enterrados na terra. Parte do sertão nordestino também fazia assim. Aliás, muitas etnias indígenas faziam assim, com frutas diversas. E continuaram fazendo mesmo depois da invasão europeia, misturando suas técnicas com técnicas européias, misturando conceitos, como grande povo antropofágico que somos.

Dá pra dizer, assim, a grosso modo, que onde tem caju já foi, algum dia, feito alguma bebida alcoólica com caju. Lindo.

20/9/2022
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