Artigo Folha SP: O movimento do vinho natural nunca foi sobre vinho.
( artigo meu para Folha de São Paulo, 2023 )
De acordo com o dicionário, vinho é “a bebida alcoólica resultante da fermentação total ou parcial do mosto de uvas frescas”. Pelo artigo 3º da lei nº 7.678, de 8 de Novembro de 1988 “vinho é a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto simples de uva sã, fresca e madura.”
A lei e o verbete nos dizem que vinho é apenas suco de uva fermentado, mas infelizmente isso não é verdade. Além da uva, são centenas os aditivos sintéticos e técnicas enológicas permitidas e utilizadas na indústria do vinho, seja na vinificação ( com os chamados insumos enológicos, equivalentes aos aditivos alimentares ), seja no plantio ( com os famosos agroquímicos ). O tal “suco de uva fermentado” é o que hoje denominamos “vinho natural”, embora o termo seja contestado até mesmo internamente pelos próprios produtores ligados ao movimento.
Parte do choque da informação acima provém do fato de que, ao contrário da indústria alimentícia, a indústria do vinho não é obrigada a mencionar todos os aditivos no rótulo.
Da mesma forma que a alimentação e nossos modos de vida, as bebidas alcoólicas assim como também o vinho sofreu grandes mudanças depois da segunda metade do século XX, transformando-se com a crescente industrialização dos processos em não mais uma bebida cultural, senão, um produto industrial como qualquer outro sujeito às leis de mercado, demandas, adequação aos padrões de gosto internacionais, propaganda e lucros. Metaforicamente, o vinho que conhecemos hoje está mais próximo de um suco de laranja de caixinha do que da laranja em si.
Na década de oitenta, indignados com o que o vinho havia se tornado no país durante a febre do Beaujolais Nouveau ( na época um dos vinhos mais industrialmente manipulados do mercado ), quatro jovens da região de Morgon, na França, iniciaram um movimento de resistência que se tornaria, mais tarde, o que conhecemos hoje como “movimento do vinho natural”. Eles basicamente defendiam a agricultura orgânica e a não utilização de insumos enológicos na vinificação, fundamentados em ideais de preservação ambiental, autenticidade do território, preservação das variedades locais em detrimento dos clones internacionais, além de independência do sistema agrícola industrial/químico que forçava os vinhateiros a contrair dívidas para pagar os insumos do plantio e da vinificação. Isso sem mencionar a luta como agricultores familiares e artesanais contra a injusta força das grandes empresas e dos interesses econômicos.
Não precisamos ir tão longe no mapa ou no tempo para nos dar conta que aconteceu ( e acontece ) exatamente o mesmo com uma série de agricultores mundo afora, sejam eles de videiras ou não. Embora os restaurantes mais prestigiados do mundo já tenham cartas exclusivas de vinhos naturais estejamos no auge dos incertos meandros do modismo, o movimento de vinho natural nunca foi apenas sobre vinho, mas sim, sobre resistência agrícola, ambiental, social, cultural e econômica.