Vinhos

A nova geração de vinhos naturais do Brasil. 

“Pode-se notar que os conhecimentos, tal como água represada, porém vivente, paulatinamente se elevam até um certo nível em que as mais belas descobertas são feitas não tanto pelos indivíduos, mas pelo próprio tempo, tal como coisas muito importantes foram feitas ao mesmo tempo por dois ou mais pensadores instruídos.”

Johann Wolfgang von Goethe, O experimento como mediador entre objeto e sujeito, 1792.

Movimentos não nascem sozinhos. Assim como em muitas partes do mundo, o Brasil da década de noventa viu surgir, muito timidamente, o embrião do que seria hoje o movimento de vinhos naturais no país – e o que começou com alguns poucos vinhateiros considerados “loucos”, passados 30 anos, transformou-se em um movimento expressivo que vê florescer a sua segunda geração de vinhateiros.

O movimento do vinho natural teve suas raízes na década de 80, em Beaujolais, na França: foi um movimento de resistência à crescente industrialização da produção vinícola na região, então em seu auge: vinhos extremamente modificados, solos castigados pela agricultura convencional e seus venenos, produtores agrícolas endividados pela compra de maquinários e insumos enológicos, rótulos, sabores e aromas dos vinhos cada vez mais similares, moldados pela indústria, suas leveduras selecionadas, artifícios de produção, parâmetros estandardizados por críticos e pontuações.

Um grupo de vinhateiros rebeldes, composto por Lapierre, Breton, Thévenet, Foillard e Chamonard, conhecido como a “Gangue dos 4” (embora fossem cinco), começou uma jornada de retorno às práticas tradicionais de vinificação, em respeito à autenticidade do vinho, à saúde do solo e à autonomia social e financeira dos produtores agrícolas. Era o início dos vinhos elaborados com agricultura limpa e sem aditivos enológicos: o início do que hoje chamamos de movimento do vinho natural, um movimento de resistência com bases profundas que muitas vezes é erroneamente interpretado apenas como um “estilo” ou “modo de elaboração” de um vinho.

Se olhássemos para o Brasil da década de noventa, poderíamos ver em suas adegas e campos Luiz Henrique Zanini e Álvaro Escher, com o que seria o futuro projeto da Era dos Ventos; Marco Danielle voltando da França e iniciando o Atelier Tormentas; Acir Boroto e Zulmir DeLucca já produzindo em suas propriedades familiares uvas viníferas orgânicas; além de Juan Carrau à frente da lendária vinícola Velho do Museu, produzindo uvas viníferas, vinhos orgânicos e biodinâmicos já com certificação. Esses e muitos outros anônimos surgiram com os mesmos ideais de cultivo e vinificação limpos.

Depois de 2010, assim como na maior parte do mundo, o Brasil viveu o grande ‘boom’ natural, e uma miríade de vinhateiros “fora da caixa” veio à tona, num momento goethiano de transbordamento das águas represadas do próprio movimento: era a primeira geração de vinhateiros naturais no país que se desenhava. Lizete Vicari, Eduardo Zenker, Marina Santos e Rodrigo Ismael engrossaram o time já composto pelos pioneiros. Interessante notar que parte deles nem se deu conta, no início, de que elaboravam vinhos chamados “naturais” ou que participavam de um movimento muito maior, que já se desenhava mundialmente desde a década de oitenta. O elo de ligação entre esses produtores era apenas a insatisfação com o modus operandi convencional do mundo do vinho, assim como os quatro de Morgon e outros tantos produtores em distintos países.

Hoje, cerca de quinze anos depois, existem dezenas de produtores de vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais, artesanais e familiares, além de uns tantos que fazem vinificação natural com uvas em conversão ou convencionais de agricultura familiar, distribuídos principalmente no Rio Grande do Sul. A própria Feira Naturebas, fundada em 2013 (a primeira e ainda maior feira relacionada ao tema na América Latina), está em sua décima terceira edição e conta com mais de 200 expositores na edição de 2025, sendo que ao menos 50 desses projetos são brasileiros.

Iniciativas em Minas Gerais, São Paulo e no Nordeste do país são atualmente cada vez mais corriqueiras, expandindo as fronteiras da produção de vinho no Brasil, mas o Sul do país ainda é a região com a maior concentração de vinhateiros – principalmente pelo fator histórico e cultural, pois foi ali que os primeiros imigrantes iniciaram a cultura do vinho.

Os personagens do vinho natural no Brasil, assim como em outras partes do mundo, são dos mais diversos, embora sigam um padrão próprio do movimento: agricultores tradicionais, familiares, que sempre mantiveram um cultivo limpo e saudável, privilegiando as policulturas e os saberes tradicionais, hoje reconhecidos por isso; agricultores que partem para a conversão orgânica ou biodinâmica de seus vinhedos por estarem convencidos de que essa é a melhor e única opção para a saúde do planeta e da sociedade; jovens urbanos que voltam para as áreas rurais, para a terra, implementando novas percepções de produção e de consumo no trabalho do campo, frutos de uma nova geração de pensamento agrícola.

Por convicção ou tendência, o fato é que até mesmo bebedores que torciam o nariz para o vinho natural e nacional (dois adjetivos repletos de preconceitos, que juntos até hoje podem causar arrepio em alguns) encontraram nesses vinhateiros desgarrados dos velhos estigmas uma fonte de novas experiências. O estilo de vinhos que dominou o paladar do brasileiro entre as décadas de 1970 e 2000 já não encontra lugar entre os bebedores modernos, cansados da mesmice e da falta de identidade desses rótulos. Da mesma forma, gerações inteiras de novos bebedores e sommeliers, alinhados com os paradigmas atuais de sustentabilidade e saúde, já iniciam sua vida etílica e profissional através de vinhos sem aditivos e cultivados de maneira limpa.

Uvas trazidas pelos imigrantes do século XIX estão sendo redescobertas e resgatadas, como a branca Peverella e a Moscato Antigo. Variedades americanas antes menosprezadas, como a Isabel, naturalmente resistente e sem necessidade de muitos tratamentos para o cultivo, voltam para as adegas. Uvas gregas, georgianas e italianas estão sendo introduzidas em vinhedos experimentais na tentativa de encontrar variedades adaptadas a cada microclima brasileiro e manejo agrícola sustentável. Clones de uvas desenvolvidos para regiões específicas, como a Ribas de São Roque, estão sendo novamente pesquisados e vinificados por vinhateiros regionais. Madeiras nativas brasileiras estão na boca e nas barricas dos vinhateiros mais modernos. Ânforas, vidro e tanques antigos de cimento trabalham lado a lado, numa mistura de busca por inovação e resgate de tradições.

Selecionei para esta matéria alguns produtores da “nova geração” de vinhateiros relacionados ao movimento do vinho natural no país que valem a pena conhecer, pelo trabalho, inovação e, principalmente, talento. Ficam de fora muitos outros projetos interessantíssimos, que convido todos a explorarem com mais afinco. 

Da mesma forma, fica a provocação de não deixarmos de lado os pioneiros que iniciaram o movimento no país, pois, em sua maioria, não apenas continuam fazendo vinhos, como os fazem cada vez melhores. Muitos da primeira e da segunda geração tenho a sorte de acompanhar desde o início de seus projetos. Seus vinhos podem ser encontrados diretamente nas vinícolas e também na Enoteca Saint VinSaint, meu restaurante. Todos os contatos destes e de mais tantos outros,  para compras e relacionamento direto, podem ser encontrados no mapa de produtores gratuito do site da feira Naturebas: www.feiranaturebas.com.br/mapa. 

  1. Cantina Mincarone, Porto Alegre, Rio Grande do Sul

A Cantina Mincarone é um projeto de vinícola familiar. Ana Maria Mincarone, jornalista de formação, estudou permacultura, astrologia e outras vertentes esotéricas antes de começar a fazer suco de uva por extração a vapor e iniciar um curso de agricultura biodinâmica para a implantação de um vinhedo de uvas americanas na propriedade da família em Porto Alegre. Seu filho, Caio Mincarone, fotógrafo de surfe que mora em Florianópolis, entrou de cabeça no projeto, que então passou a focar na produção de vinhos. Os vinhedos ganharam mudas de castas europeias e as primeiras vinificações aconteceram em 2017 sob a batuta da mestra Lizete Vicari e de seu filho José Augusto. Ana e Caio aprenderam os processos de vinificação ancestral e, desde então, seguem fazendo microvinificações, experimentando diversas castas e terroirs nos mais de 20 rótulos produzidos a cada safra. Ano a ano, as pesquisas em relação ao solo, castas e vinificação se tornam mais profundas e consolidadas. Caio também figura entre os produtores que mais ajudam a outros produtores, comprando uvas dos principais agricultores familiares e ecológicos, auxiliando no escoamento de safras regionais e fortalecendo os laços entre os produtores, agricultores e pessoas relacionadas ao movimento do vinho natural. Um grande exemplo de que vinho natural não é apenas um vinho, mas é um movimento e está intimamente ligado às relações humanas. 

  1. Vanessa Medin, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul

Vanessa Medin, nascida no Dia do Enólogo, é considerada uma das mais talentosas de sua geração. Cresceu entre parreirais em uma família de viticultores e, desde a adolescência, decidiu seguir carreira no mundo do vinho. Sua trajetória profissional começou em 2008 no setor de turismo da Cooperativa Aurora e, no mesmo ano, ingressou no Miolo Wine Group, onde atuou no engarrafamento sob a supervisão do enólogo Paulo Giacomoni e, posteriormente, no turismo. Em 2011, retornou à área técnica graças a uma oportunidade com o enólogo Miguel Ângelo Vicente Almeida, passando pelo laboratório antes de atuar na unidade do Seival, na Campanha Gaúcha, e na unidade do Vale do São Francisco, ao lado do enólogo Flávio Duarte. De volta à Serra Gaúcha, integrou o laboratório e, nas safras de 2013 e 2014, trabalhou diretamente na elaboração sob a orientação do enólogo Giuberto Simonaggio. Seu primeiro contato com a vinificação natural ocorreu no final de 2015, ao ingressar no Atelier Tormentas, despertando um profundo interesse pela prática. Ao longo dos anos, viajou para a Europa, onde conheceu alguns dos principais nomes do vinho natural, consolidando sua visão sobre a produção de vinhos com baixa intervenção. Em 2018, iniciou sua própria vinificação, marcando o primeiro passo na produção de rótulos autênticos, sem adição de produtos enológicos ou correções, refletindo sua filosofia de trabalho e compromisso com a pureza e identidade do vinho, trabalhando ao mesmo tempo na conversão de seus vinhedos de Chardonnay para uma agricultura sustentável. 

3. Pianegonda, Viamão, Rio Grande do Sul

Localizada em Viamão, Rio Grande do Sul, a vinícola de Gabriel Pianegonda se dedica à produção de vinhos seguindo práticas agrícolas regenerativas e sustentáveis, que respeitam os ciclos da natureza e a vitalidade do solo. Com uma propriedade de três hectares, o projeto prevê a expansão dos vinhedos para até um hectare plantado, reforçando seu compromisso com a produção em pequena escala e de alta qualidade. A implantação dos vinhedos teve início em 2015 e, desde então, o manejo segue os princípios da biodinâmica, promovendo a harmonia entre solo, plantas e ecossistema.

Atualmente, a vinícola está em processo de certificação Demeter, um dos selos mais reconhecidos para a agricultura biodinâmica no mundo. Entre as variedades cultivadas estão Chardonnay, Alvarinho, Tannat, Nebbiolo e Verdicchio, refletindo a busca por vinhos autênticos, de identidade única e mínima intervenção. Além da produção de vinhos, o projeto valoriza a biodiversidade, práticas regenerativas e a conexão entre o terroir e o resultado final na taça.

4. Wally Vinhos, Canguçu, Rio Grande do Sul

Esse é um dos projetos mais recentes e inusitados da nova geração do vinho natural no Brasil. Vitor Wally, comissário de voo, encontrou na terra sua segunda paixão. Encantado pela filosofia do vinho natural, decidiu iniciar seus primeiros experimentos em Canguçu (RS), plantando videiras em sua horta urbana. As variedades escolhidas foram Isabel, Chardonnay e Cabernet Franc.

Sem pretensão comercial, começou a vinificar de forma natural em um apartamento e na garagem da casa dos pais, com o objetivo inicial de compartilhar os vinhos apenas com amigos. O entusiasmo deles foi essencial para que o projeto ganhasse forma. Em 2024, Wally reformou a garagem da casa dos pais para adequá-la às exigências legais e lançou oficialmente seu projeto na Feira Naturebas, em São Paulo.

Hoje, sua produção inclui vinhos elaborados tanto com uvas de seus experimentos em viticultura orgânica quanto com uvas de agricultura familiar adquiridas de produtores parceiros. Além dos vinhos de uva, o projeto também explora a fermentação de frutas nativas brasileiras e meles, alinhando-se às tendências mais modernas dentro do próprio movimento do vinho natural. 

5. BellaQuinta Vinhos Finos, São Roque, São Paulo

Embora a BellaQuinta Vinícola tenha suas raízes na década de 1930, foi em 2016 que Gustavo Borges elaborou o primeiro vinho natural da vinícola, um Cabernet Franc. A BellaQuinta quebra os preconceitos em relação ao vinho natural, ao vinho nacional e aos vinhos de São Roque, mantendo vinificações artesanais sem aditivos enológicos.

Destaque para o trabalho com a rara variedade Ribas IAC, desenvolvida no início do século XX em São Roque. A Ribas é uma uva híbrida de Syrah e Seibel, criada para ser adaptada ao terroir paulista. A vinícola também investe na pesquisa com macerações, madeiras, novas variedades e fermentação em ânforas de barro.

Uma de suas grandes joias é a produção de vinho licoroso pelo método de vasca perpétua: todos os anos é adicionado mosto novo e retirada uma parcela para engarrafamento, fazendo com que as garrafas guardem a informação de dezenas de safras em seu interior.

6. Vinícola Lorenzo, Maria da Fé, Minas Gerais

A Vinícola Lorenzo, fundada por Leonardo e Elisama Lorenzo, nasceu da paixão do casal pelo vinho e começou com o plantio de uma videira recebida durante uma viagem ao Chile.

Após descobrirem a região de Maria da Fé, em Minas Gerais, com sua grande variação térmica, adquiriram um terreno e iniciaram o cultivo de suas videiras de forma sustentável, minimizando o uso de agroquímicos. As primeiras vinificações foram realizadas na vinícola Entre Vilas, de Rodrigo Ismael, um dos pioneiros dos vinhos naturais na Mantiqueira. Nos últimos dois anos, no entanto, os vinhos passaram a ser elaborados na adega própria da vinícola, localizada na propriedade familiar em Maria da Fé.

Em um cenário dominado por vinícolas convencionais e de poda invertida, a Vinícola Lorenzo se destaca como um oásis de autenticidade. Seus vinhos de Pinot Noir e os laranjas elaborados com Sauvignon Blanc ganharam os aplausos dos bebedores desde as primeiras safras. 

7. Terroir da Vigia, Santana do Livramento, Rio Grande do Sul

O Terroir da Vigia, localizado em Santana do Livramento, na Campanha Gaúcha, é um projeto liderado por Gaspar Desurmont, enólogo francês com especialização em biodinâmica e vitivinicultura tropical.

Gaspar chegou ao Brasil com outro projeto vitivinícola, a Vinhetica, mas só nos últimos anos conseguiu implantar seu vinhedo orgânico e iniciar as vinificações naturais em sua adega própria. O Terroir da Vigia é o segundo vinhedo certificado rgânico no Brasil, sendo o primeiro da vinícola DeLucca, de Zulmir e Neusa DeLucca, em Caçapava do Sul, pioneiros no movimento natural no país. 

O projeto integra práticas sustentáveis, com vinhedos orgânicos, produção de vinhos naturais e queijos artesanais de ovelha. Além disso, alia pesquisa e práticas agrícolas modernas, como a destilação de óleos essenciais e hidrolatos de plantas nativas para a agricultura.

A vinícola também se destaca pela pesquisa e resgate histórico no uso de barricas de madeiras nativas brasileiras, como castanheira, cedrinho e ipê, conferindo aos vinhos uma autenticidade e delicadeza únicas. O projeto é um exemplo de inovação e compromisso com a sustentabilidade, oferecendo vinhos de qualidade que respeitam o terroir e a natureza.

Entre as uvas pouco conhecidas no Brasil, Gaspar cultiva a tinta georgiana Saperavi em seus vinhedos experimentais.

8. Montaneus

A Montaneus é um projeto de Leonardo Haupht e Gabriela Suthoff. Leonardo é enólogo, com ampla experiência em viticultura e enologia, tendo atuado por mais de 20 anos na Moët Hennessy do Brasil – Chandon. Além de viticultor, Léo é montanhista, com passagens por montanhas como o Aconcágua e grandes travessias, sempre integrando suas paixões pela montanha e pelo vinho no projeto.

Em 2020, junto a Gabriela Suthoff, decidiram mudar de vida e iniciar uma produção própria de vinhos de vinificação natural em Desvio Blauth. Gabriela é pedagoga Waldorf e chef de cozinha e, juntamente com Leonardo, desenha os vinhos e define a compra das uvas dos parceiros.

Além dos vinhos, Gabriela também conduz seu próprio projeto de restaurante e bar de vinhos, ali mesmo em Desvio Blauth.

Nos últimos anos, o casal se dedicou a implantar na propriedade seus próprios vinhedos com manejo orgânico, buscando um modelo de cultivo sustentável. Priorizam a pesquisa de variedades resistentes, o resgate de cepas tradicionais, como a Peverella, e apostas inovadoras, como a georgiana Saperavi.

21/4/2025
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