A industrialização do vinho na América Latina.
A história do vinho na América Latina mudou radicalmente no século XIX por conta das migrações européias, da filoxera e do início da industrialização do setor vitivinícola. Um século mais tarde, na década de 1970, a chegada das multinacionais acabou por transformar, para sempre, a história e o perfil dos vinhos nesses países.
A migração europeia para a América Latina no século XIX ocorreu devido a inúmeros fatores: superpopulação, empobrecimento do solo, crises econômicas e agrícolas, instabilidade política, fome, desemprego e como consequência, a busca por melhores condições de vida além mar.
Ao mesmo tempo, governos latino-americanos, como os da Argentina, Brasil e Uruguai, promoviam a imigração para aumentar a força de trabalho e colonizar áreas rurais, principalmente depois da queda do regime escravocrata, oferecendo benefícios como terras gratuitas, passagens subsidiadas e contratos de trabalho. O avanço nos transportes marítimos, como os navios a vapor, também tornou as viagens mais rápidas e acessíveis, facilitando a migração entre continentes.
Imigrantes italianos, principalmente após a unificação italiana, buscaram oportunidades agrícolas na Argentina e no Brasil no final do século XIX. Muitos espanhóis migraram para a América Latina atraídos por laços culturais e pela expansão econômica em países como Argentina e México. Portugueses se estabeleceram no Brasil, continuando a longa relação histórica entre os dois países, e colonos alemães foram incentivados a povoar regiões rurais, como o sul do Brasil e do Chile.
Outro fator importante para a história do vinho latinoamericano foi a filoxera, uma praga devastadora que atacou vinhedos no final do século XIX e início do século XX. A filoxera teve um impacto profundo na viticultura mundial e também influenciou o desenvolvimento do vinho na América Latina. Estima-se que 60% a 90% dos vinhedos da Europa entre o final do século XIX e início do século XX foram devastados, desencadeando uma gigantesca crise no setor e consequentemente, muitos profissionais ociosos em seus países de origem.
A América Latina tornou-se nesse momento uma nova fronteira vitivinícola extremamente atrativa, aliando fertilidade do solo, mão de obra barata e proteções naturais contra a tão temida praga – que demorou mais para se espalhar no continente devido ao isolamento geográfico e às barreiras naturais, como as grandes cordilheiras e desertos.
A vantagem geográfica que impedia a proliferação da praga nas mesmas proporções da Europa, a chegada de imigrantes europeus e inúmeros investimentos locais e estrangeiros fizeram com que pouco a pouco a América Latina se modernizasse e industrializasse os seus vinhos, importando tecnologia, enólogos e maquinários europeus, bem como novas variedades de uva, como as francesas Malbec, Cabernet Sauvignon, Sauvignon Blanc, Chardonnay, Tannat, Merlot, entre outras. Essa mudança na vitivinicultura permitiu que países como Argentina e Chile emergissem como potências vinícolas globais – o que por outro lado sepultou inúmeras tradições relacionadas aos vinhos artesanais desses países, em prol de uma padronização cada vez mais voltada para o mercado externo.
Quando a filoxera começou a afetar os vinhedos latino-americanos, os países da região adotaram as práticas de enxertia com porta-enxertos de videiras americanas resistentes (como Vitis labrusca ou Vitis riparia), seguindo o modelo europeu. No Brasil, uvas da América do Norte como Niágara, Bordô e Isabel também ganharam espaço, sendo usadas tanto como porta-enxerto quanto para produção direta de vinhos simples e de mesa.
Uvas hoje conhecidas como símbolos desses países, como a Malbec na Argentina e a Carmenére no Chile fazem parte desse momento da história da industrialização do vinho e da chegada de novas variedades francesas.
A Malbec foi trazida à Argentina em 1853 pelo agrônomo francês Michel Aimé Pouget, a pedido de Domingo Faustino Sarmiento, futuro presidente da Argentina, que buscava modernizar o país e introduzir variedades francesas de prestígio e elevar a qualidade dos vinhos argentinos. Uma excelente estratégia de marketing associou a produção de vinhos encorpados, frutados e fáceis de harmonizar com a culinária local, especialmente a carne bovina, resultando no bombástico fenômeno comercial que são os vinhos de Malbec argentinos nos dias de hoje.
Outro exemplo de estratégia industrial de marketing vitivinícola sul-americano são os vinhos da uva Carmenère, escolhida como símbolo por ser uma uva extinta na França. A Carmenère foi introduzida no Chile em meados do século XIX junto com outras variedades francesas, como Cabernet Sauvignon e Merlot, e durante mais de um século foi confundida com a Merlot devido a sua semelhança visual. Em 1994, amostras foram analisadas pelo ampelógrafo francês Jean-Michel Boursiquot, que confirmou que boa parte do que era chamado de “Merlot chileno” era, na verdade, Carmenère. Nascia ali mais uma grande jogada de marketing poderosa a nível mundial.
Na década de 1970, a chegada de multinacionais de bebidas alcoólicas à América Latina marcou uma nova transformação significativa na indústria vinícola da região. As multinacionais vieram para a América Latina na década de 1970 em busca de terras acessíveis, condições climáticas favoráveis, custos operacionais baixos e um mercado em crescimento. Empresas estrangeiras, como Rothschild, Torres e Mondavi investiram fortemente em países como Chile e Argentina, trazendo tecnologia avançada, técnicas modernas de vinificação e uma visão voltada para o mercado internacional. O Brasil também se tornou um destino atrativo para multinacionais do setor vinícola, que impulsionaram a modernização da indústria local e elevaram os padrões de qualidade. Empresas como Almadén, pioneira no cultivo de uvas viníferas para vinhos finos; Chandon, subsidiária da francesa Moët & Chandon, que trouxe expertise na produção de espumantes; e Martini & Rossi, reconhecida por seus vermutes, estabeleceram operações no país.
Durante todo o século XX a imposição de estilos globais uniformizou a produção, marginalizando práticas tradicionais e variedades locais. Pequenos produtores enfrentaram dificuldades para competir, muitas vezes sendo pressionados a vender suas terras, enquanto o foco na exportação elevou os preços dos vinhos no mercado interno. Variedades locais e tradicionais de cada país foram relegadas a segundo plano em detrimento da utilização de clones comerciais, enquanto técnicas ancestrais, como fermentação espontânea e uso de ânforas de barro, foram substituídas por processos padronizados, tanques de aço inoxidável, leveduras selecionadas e a crescente utilização de aditivos químicos no solo e na vinificação. A produção passou a atender ao gosto internacional, homogeneizando os vinhos e afastando-os de suas raízes culturais.
A expansão dos vinhedos intensificou a exploração de recursos naturais, agravando problemas ambientais como o uso excessivo de água e pesticidas é um tema extremamente atual e que que levanta questões sobre a sustentabilidade e a preservação cultural e ambiental no setor vinícola da região.