Comida

Pães, glúten, trigo, farinhas, fermentação natural….

Quem se preocupa com o que come sempre fica no dilema nutrição versus cultura alimentar. Bom, eu pelo menos fico. 

É sabido, por exemplo, que o trigo moderno causa muito mais alergias e desconfortos que os primos ancestrais. Da mesma forma, é sabido que as farinhas refinadas fazem mais mal do que bem, por uma série de motivos. E ainda tem o lance de que o mesmo trigo, em suas diversas versões, dá picos gigantescos de insulina do sangue, o que pode desencadear vários desequilíbrios na saúde e na cinturinha de pilão.

Mas então não vamos nunca mais comer uma pizza ou um pedaço de pão?

Pois é. Quanto mais você estuda e se aprofunda ( e pelamor, sou apenas uma amadora nesse assunto ), mais chato você fica. E fica bem difícil comer as mesmas coisas, mesmo sabendo como aquilo pode fazer mal ou ao menos nenhum bem pro seu organismo.

Por outro lado, sou hedonista assumida. Nasci pra estar feliz e sentir prazer. E a comida representa grande parte disso. Indiscutivelmente, também, o prazer da comida está ligado aos seus laços afetivos e culturais com ela. A pizza de domingo. O pão na chapa de manhã. O bolo com café com leite no meio da tarde. 

A panificação surgiu lá pelos longínquos anos de 6000 antes de Cristo. Faz parte da história humana. O que não faz parte, entretanto, é a maneira que se fazem pães hoje em dia: farinhas misturadas com água, fermento pronto e diversos aditivos: emulsificadores, agentes oxidantes e redutores, enzimas ( e -amilases, hemicelulases, lípases etc.) e aceleradores da fermentação. 

Pensando muito sobre o pão nosso de cada dia, a solução parece ser a mais óbvia: fazer como se fazia sempre:

– Primeiro lugar: não basear a dieta em excesso produtos de trigo, refinados ou não, nem em excesso de grãos.
– Segundo: se possível procurar espécies de trigo menos hibridizadas, como os primos ancestrais einkorn, elmer, espelta. Pois o trigo de hoje em dia foi hibridizado ao extremo para ser bom, barato, fácil de cultivar e adequado para a panificação – mas não necessariamente para ser mais saudável.
– Terceiro: fermentar. Fermentar muito. Fermentar como se não houvesse amanhã.

Obviamente, temos outro ponto: o trigo não é “nosso”. Ele inclusive malemá se dá bem por aqui – temos bastante dificuldade em cultiva-lo de maneira sã. E embora a panificação permeie a humanidade desde muito, temos que lembrar que nós, brazucas, tupiniquins, americanos em geral… não tínhamos nenhum tradição de panificação antes da chegada dos europeus.

Pizza está na alma de qualquer paulista, claro. Mas enquanto a Europa comia pão, a gente comia mingaus e papas.

A colonização moldou nossa cultura alimentar? Claro. Temos muito de sangue europeu? Óbvio. Administrações do século 19 terminaram por fincar novas tradições gastronômicas, como os japoneses e italianos em Sampa? Sem dúvida. Eu fui criada com macarronada, pão caseiro, gnocchi e pizza ( além da mistureba de pratos de outras culturas ).

Mas isso tudo não impede de abrir um pouco a cabeça para farinhas como as de milho e de mandioca, muito mais tradicionais na cultura do nosso continente, e preparações como broas, bolos de tubérculos, pastas e mingaus, pães de milho e mandioca, bolachas de polvilhos diversos. Pamonhas, curaus, puba, cuzcuz, angus. 

Pães com fermentações muito rápidas não são bem digeridos pelo nosso corpo. Se você taca um fermento químico ou um biológico, o pão pode até crescer, ficar lindo, mas isso não significa que a mistura realmente fermentou. As farinhas sem fermentação ficam muito mais difíceis de digerir. Quem nunca notou inchaços e desconfortos depois de encher a pancetta de pão, de bolo, de bolacha, de farinha? Fora isso, quando você fermenta de maneira natural, você coloca pra dentro um monte de bactérias mais do que do bem pra dentro da barriga. Num pão de fermentação não natural, esses benefícios não existem.

É o velho mote da alimentação saudável: ah, quer pão? Então faça o seu fermento, faça sua massa, espere dois dias, asse e daí coma. Só pelo trabalho de fazer e fazer bem feito a ingestão de produtos de trigo já cairia bastante na nossa dieta.

A fermentação natural, além de deixar as farinhas ( trigo, centeio, aveia ) mais fáceis de digerir, reduz a carga de antinutrientes desses grãos ( como em qualquer fermentação em que deixamos de molho alguma coisa ), o que acaba por deixar as coisas boas, como os minerais por exemplo, mais disponíveis para serem absorvidos pelo nosso organismo.

Aparentemente, toda a cambada de bactérias e também os ácidos presentes por conta dessa fermentação, ajudam o corpo a digerir melhor esse alimento. E claro, as altas de glicemia também são bem menos drásticas do que nos pães de fermentação rápida. Muita gente que tem sensibilidade ao trigo ou ao glúten acaba se sentindo menos mal – ou não sentindo nada – quando ingere pães fermentados naturalmente. Pizzas idem. Você tem pizza pronta e você tem massas de pizza que fermentam durante 3 dias. E faz toda a diferença. 

A fermentação natural é basicamente fermentar com o que existe no ambiente: bactérias e leveduras, principalmente. 

Você deixa farinha e água de um dia pro outro, e isso vai começar a fermentar. 

Se você alimentar direitinho essa mistura, terá uma colônia de bactérias e leveduras fortes e ativas: voilá, isso é um fermento natural, o famoso levain. 

Teoricamente, quando você fermenta um pão naturalmente, as enzimas do cereal hidrolisam o amido, formando açúcares que são transformados em ácido láctico pelas bactérias e em etanol pelas leveduras. A liberação de CO2 na fermentação alcoólica forma bolhas que vai dar porosidade e leveza à massa. E o pão vai crescer caso essas bolhas não se desprendam: para isso entra uma das proteínas proibidonas do momento, o glúten, super elástico, que retêm as bolhas dentro do pão. Por isso que pães sem glúten tem um aspecto mais parecido com “bolos” do que com os pães que conhecemos.

Aliás, uma dica: quem quer perder ou manter o peso ( e não tem sensibilidade ou doença celíaca ) e resolveu tirar o glúten da dieta por causa disso, cuidado com os “substitutos”. Geralmente os pães, bolos, etc… são feitos de carboidratos diversos, como mandioca, batata, etc… e em excesso não vão ajudar em nada a cinturinha. Quem quer tirar o trigo ou o glúten da dieta, melhor tirar de vez e se acostumar a não comer mais as preparações clássicas que o contém, em vez de ficar procurando substitutos sem glúten pra tudo: até por que a maioria dos substitutos de glúten é industrializado, super marketeado por causa da moda e podem vir carregados de aditivos e várias outras coisas nada boas pra saúde.

Existem bons substitutos, claro, principalmente pra quem leva a sério uma dieta sem trigo ou sem glúten por causa de doença celíaca ou sensibilidade, mas sempre bom lembrar de comer comida o mais natural possível, ao invés de substituir por empacotados e embalados do supermercado. Nem sempre o rótulo que diz que é o mais saudável é realmente o mais saudável pra você. Vai substituir seu pão? Tente os artesanais sem glúten, ou então… Faça você mesmo. É a garantia de fazer algo saudável de verdade. Fora que é muito mais divertido.

14/4/2016
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