Bretanomices, Brett ou Bretta
Hmmm, a Brett.
Nome de batismo, Bretanomices, apelidos Brett ou Bretta, você pode escolher o apelido que preferir.
É a levedura mais mal amada e mais mal compreendida do mundo do vinho. Ela está presente em 10 de 10 rodinhas que falam de vinho natural, embora já venha perdendo a liderança no “top 10 defeitos que todo mundo acha que conhece mas não sabe lhufas” para o primo souris ( que em em português significa “rato”).
Mas falemos da Brett, primeiro.
Primeiro ponto, ela é uma levedura e não bactéria: leveduras são fungos, e mais parentes dos cogumelos e dos seres humanos do que são das bactérias. Ela atua junto com a Sacaromyces e mais algumas centenas de leveduras e bactérias perdidas no bololô de uma fermentação espontânea.
Hoje em dia se convencionou dizer que alguns aromas como couro, suor, estábulo e outros menos bonitinhos são aromas de “brett”, ou de vinhos “contaminados” por essa levedura. E isso pode ser verdade, pois quando ela está atuando na fermentação, pode dar origem à esses aromas mesmo. Mas ela não é a única responsável por todos os “defeitos” do vinho, e grande parte dos aromas agradáveis e que vão dar complexidade para o vinho, também podem partir dela.
Um dos primeiros artigos que chegou na minha mão foi da Universidade Californiana UC Davis, de 2012. Pois é, gente , 2012… essa discussão já é antiga.
Bom, em 2012 o departamento de enologia e viticultura da universidade californiana UC Davis lançou, depois de muita pesquisa, uma nova roda de aromas relacionados à Brett – e batata, deixou muito pretenso sommelier de cabelo em pé, provando por a mais b que nem só de porco vive a Brett. Pelo contrário, aromas típicos de castas como Syrah, Cabernet e de regiões como Bordeaux, por exemplo, podem estar relacionados muito mais à atuação da microbiota local do que propriamente originárias da casta. Aliás, essa é uma questã em todo o mundo do vinho né. Tipicidade de casta ou de terroir. A ala industrial e mais americanizada do vinho sempre colocou a casta em primeiro lugar, como se ela definisse as características organolepticas do vinho. A velha escola do vinho, dominada pela Europa, já sempre bateu o pé dizendo que o terroir é que definia as características. E o que é terroir senão, e principalmente, a microbiota que atua nas fermentações? Bingo. A Brettanomyces é parte integrante do terroir, assim como os outros milhões de leveduras e bactérias que habitam os vinhedos e as bodegas.
Lá em 2012 esse artigo californiano foi bem chocante pro mundinho do vinho, que tava ainda na era do gelo achando que Brett é uma levedura que estraga o vinho.
A universidade testou 83 amostras de Brett e 17 – mais de 20% – foram considerados como dando um impacto aromático mais positivo do que negativo no resultado final.
Tá, mas porque o povo tem tanto medo de Brett assim? Ó. As principais leveduras numa fermentação alcoólica vão ser mesmo a Sacharomices e a Brett. A Saccharomyces cresce cinco vezes mais rápido que a brett, então naturalmente ela vai assumir a liderança em quase todas as fermentações do vinho.
Massssss a Brett é mais versátil, e muito mais invocada que a prima patricinha: ela pode comer muitas coisas diferentes pra sobreviver, além do açúcar – incluindo etanol e aminoácidos. E sim, ela continua gerando como subproduto dessa reação de fermentação, álcool. Ela também é mais tolerante a mudanças de pH e temperatura. É difícil de matar uma brett. E tudo o que você usa para matar a Brett – geralmente o tal do SO2 – é também bastante eficaz para matar a Saccharomyces. Ou seja, matou a mais forte, matou a mais fraca, lógico.
É por isso que as vinícolas mais comerciais usam a rodo o sulfito na hora de colher as uvas e depois colocam leveduras selecionadas pra que o mosto fermente. Eles “limpam” entre aspas as leveduras e bactérias existentes e depois acrescentam as que eles querem. Baita Frankenstein né. Depois ainda diz que é vinho de terroir, ridículo. Como falar em terroir se você eliminou uma das coisas mais importantes do terroir, que é a microbiota?
Bom, graças a deus muita gente já sabe que fermentação espontânea com microbiota natural é a única maneira de fazer vinhos realmente de terroir, ou seja, que expressem as características daquele lugar com autenticidade, mas todo o povo que trabalha com fermentações controladas, com leveduras selecionadas, estrangeiros àquele mosto, realmente fazem isso pra modular os aromas e sabores do vinho, e também pra domesticar a presença da Brett, que se convencionou sendo “má”, justamente porque em alguns casos pode gerar aromas estranhos.
Além dos aromas estranhos, tem outra coisinha interessante da Brett, e é uma das razões que o povo taca sulfito a rodo no vinho na hora de engarrafas. Se o vinho é seco e não há nenhum residual de açúcar, a Saccharomyces, a prima sozinha, não vai voltar e refermentar. Ok. Maaaaaaaaaaaaaaaaaas a Brett, se está ali de bobeira na garrafa, já que ela se alimenta praticamente de qualquer coisa… uma hora vai encontrar alguma coisa pra para comer, e sua população vai crescer lentamente ao longo do tempo, gerando nas reações de fermentação alguns compostos que muitos julgam indesejáveis, como por exemplo, as bolhinhas de gás carbônico, cláááásssicas da tal da refermentação indesejada na garrafa. Bom, indesejada por alguns. Eu adoro, acho divertidíssimo.
Em tempo. Não estamos aqui defendendo a Brett com unhas e dentes. Ela pode ser bem perigosa sim, se por acaso domina a fermentação pode dar aromas ruins sim, e em alguns casos dá indicações claras de vinhateiros sem muito talento pra coisa, que fazem vinificações um tanto desleixadas. Ué, gente, acontece. Tem gente com talento e gente sem talento em tudo nessa vida. E ah! Importante. Uma das razões também que muita gente tem medo da Brett é que ela, além dos habituais álcool e gás carbônico, gera como subproduto da fermentação ácido acético ( como fazem as acetobacters ) – ou seja, a acidez volátil do seu vinho pode subir muito se você não tomar cuidado, e aquele cheiro meio avinagrado pode tomar conta da sua taça num piscar de olhos.
Hm. Acidez volátil alta, refermentação e aromas de chiqueiro numa garrafa de vinho. São alguns dos defeitos mais apontados nos vinhos naturais, e muita gente acha que isso é até “sinônimo” de vinho natural. Mas não é, gente. Primeiro que esses e outros “defeitos” do vinho natural não estão sóóó associados à bretanomyces, e sim, ao jeito que esse vinhateiro conduziu sua vinificação. Arrisco dizer que boa parte desses vinhos “cheios de defeito”, como muitos dizem, no fundo, são fruto, muito mais, da mão do homem do que de uma ou outra levedura específica. Não é das coisas mais fácil fazer vinho natural, gente, muito mais num mundo onde se aprendeu a fazer vinhos convencionais. Então tem muito vinhateiro que pena sim, que faz vinho estranho sim, e infelizmente muitos desses viraram sinômino de vinho natural, quando, na verdade, existem verdadeiros mestres que dominam essa arte do mundo invisível, das fermentações, leveduras e baterias, e nos apresentam ano após ano vinhos absolutamente nada… estranhos. Apenas deliciosos e saudáveis de beber.
Mais aromas relacionados à Brett? Vamos lá. Pimentão, pimenta vermelha, pimenta preta, cardamomo, roas, café charutos, grafite. A lista é grande. Ah, e alguns aromas típicos de Bordeaux, geralmente associados aos compostos 4-EP e 4-EG…. Também são provenientes da Brett. Tapa na cara, né, bebedores de Bordô 82.